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domingo, 25 de junho de 2023

A água

 

São três imperiais, duas águas das Pedras e uma coca-cola, se faz favor — pediu Diogo, ao balcão, sem ter a certeza de ser a sua vez. O pedido não merecia qualquer comentário, mas há pessoas que não perdem uma oportunidade de exibir conhecimento, ou o que com ele se parece, a propósito seja do que for.

A água é, comprovadamente, um dos produtos de excreção da atividade metabólica dos seres vivos — lançou Bernardo, seguro do impacto que ia causar na assembleia de circunstância: o grupo de amigos que deixara as toalhas a marcar lugares na areia e viera matar a sede na esplanada do apoio de praia. — Só assim se explica a enorme quantidade de água que temos, em contraste com os outros planetas conhecidos.

Eh lá! Ainda bem que pedi cerveja. — brincou Afonso, que já conhecia a “peça”.

Há também a teoria do choque da Terra com um planeta oceânico, em tempos primordiais, mas essa parece-me uma explicação milagrosa, que cheira a criacionismo — continuou Bernardo, ignorando ostensivamente o comentário. — É certo que a Terra já conteria água primordial, aquando do aparecimento das estruturas que deram origem aos primeiros seres vivos. Como conteria oxigénio e centenas de outros elementos e compostos químicos, gerados nas fornalhas nucleares das estrelas, que, ao explodirem, deram origem às poeiras e gases que vieram a juntar-se e formaram os planetas que compõem atualmente o sistema solar. Mas seria água e oxigénio não muito mais frequentes do que a mica ou o sódio. Como Carl Sagan explicou muito bem, o oxigénio foi produzido pelas algas azuis, antes do aparecimento dos organismos que hoje dependem dele para viver. É lógico especular que pode também ter sido o metabolismo de milhões de minúsculos seres vivos, a excretar quantidades ínfimas de água durante milhares de milhões de anos que deu origem a esta avassaladora massa líquida que quase submerge todo o planeta — o gesto largo abarcava a imensidão do oceano que continuava a calote visível dali.

Ih, que nojo! — fez Carolina, que já estava a visualizar gosmas e escorrimentos em criaturas moles e viscosas. — E nós andamos aqui a banhar-nos nesse muco todo?

Não seria menos límpida do que esta — garantiu o orador. — A água ainda hoje é um subproduto do metabolismo de muitos organismos, incluindo plantas e animais. Por exemplo, durante a respiração celular, o oxigénio é usado para quebrar moléculas orgânicas, libertando energia e produzindo dióxido de carbono e água como subprodutos.

Vamos todos contar uma história que meta água, salvo seja — chilreou Mariana, a mais nova do grupo, tentando salvar a tarde. — E que se tenha passado connosco. Começo eu. Quando tinha uns 14 anos, o agrupamento de escuteiros de que fazia parte, fez um acampamento na zona de Oleiros. Numa das manhãs, estava prevista uma caminhada por aqueles montes secos e cheios de pinheiros. A certa altura, e contrariando as regras aprendidas, afastei-me do grupo e da trilha, para fazer xixi e quando voltei já não vi ninguém. Chamei, gritei, mas nem um som me respondeu. Ao fim de um bocado de espera inútil, resolvi voltar para trás, pela trilha que trazíamos.

Neste ponto da narrativa, a atenção dos amigos já estava assegurada.

Andei, andei, mas não havia maneira de encontrar o acampamento. Nem reconhecia nada em volta. Claramente, estava perdida. Era verão, o calor apertava mais do que aqui, e já tinha esgotado o cantil. Comecei a sentir medo. A meio da tarde, permiti-me chorar um bocadinho. Aquelas lágrimas foram as únicas gotas que ingeri, desde o fim da manhã. Então, reparei que as andorinhas pareciam voar mais baixo, perto do alto do caminho antigo em que estava. Por aí fui, na esperança de que isso significasse mais humidade. Porque as andorinhas comem mosquitos em voo, e estes não conseguem voar alto onde há humidade.

Teresa mudava de posição, para não perder pitada.

Então, a duas centenas de metros do alto, uma fonte. Ou o que restava dela. Um pequeno muro apresentava, a meia altura, uma pedra saliente, com uma estreita cânula escavada. Dela iam pingando não mais que gotas de água. A ela colei a boca. Lentamente, aquelas gotas esparsas, mas frescas, foram-me hidratando. Ao fim de uma meia hora, tinha recobrado a esperança e permiti-me descansar um bocadinho. Nessa altura senti muito intimamente o flagelo da falta de água potável que atinge grandes fatias da população mundial. E lembrei-me das histórias de meninas africanas que palmilham muitos quilómetros para irem buscar água para a família a algum poço remoto. Não sei quanto tempo passou, mas, de repente, chegou ao pé de mim uma patrulha de escuteiros, das várias que foram lançadas à minha procura. Depois vim a saber que aquela era a rota dos moleiros de antigamente. Daí a fonte. Vivam os moleiros e outras profissões antigas que, por necessidade própria, deixaram muitas fontes por esses caminhos!

«Muito bem!», «Gira!», «Que susto!» — foram alguns dos comentários que saudaram a prestação de Mariana.

Pronto; a minha já está. Agora, outra — desafiou.

Por momentos, ninguém parecia disposto a dar continuidade à versão Decameron à portuguesa lançada pela amiga. Por fim, Afonso, o engenhocas do grupo, decidiu-se:

Eu não sei se a minha história vale. Não tem perigos de vida, mas tem água. Água, líquida, insidiosa e intrusiva, a entrar-me pelo parapeito de uma janela sem eu conseguir descortinar como entrava, nem como impedi-la de entrar. Vedei a caixilharia de alumínio com silicone, mas continuava a pingar dentro de casa e ameaçava encharcar-me o soalho e levantar-me os tacos. Percebi rapidamente que ela se infiltrava por uma fissura da pedra do parapeito, mas estava fora de questão gastar um balúrdio a substituir uma pedra enorme de mármore, mesmo depois de várias tentativas infrutíferas de vedar a frincha. Resolvi, em vez disso, construir uma “armadilha para água”, como eu lhe chamo.

Neste ponto, Afonso conseguia também atenção unânime da plateia.

Não é nada de especial; só um mecanismo simples que usa a caraterística da capilaridade, própria da água, para a obrigar a seguir o caminho que eu quero. Aliás, a água tem 70 características especiais, diferentes das dos outros líquidos. É mesmo um líquido “do outro mundo”. Como sabem, a água agarra-se às paredes dos objetos que toca. Se essas paredes forem as de um tubo muito fino, a água sobe até um certo nível. Em vez de tubos finos, usei fio de algodão, como o usado nas velas. Primeiro, capto a humidade com um pano absorvente à saída da racha e se acumula numa pequena caixa; ao interior dessa caixa liga-se o fio de algodão. A água trepa pelo fio, ultrapassa o bordo da caixa e vai-se expandido fio afora. Aí, o peso é o empurrão extra que leva a água a chegar ao fundo do fio e a pingar para um recipiente com alguma capacidade e equipado com um sifão. Quando o nível da água ultrapassa o ponto de implantação do estreito sifão, é arrastada sem piedade e vai à vida dela, através de um tubinho na parede. Nem quero imaginar o que faria ela aos meus queridos tacos.

Claramente, o grupo esperava mais. Os rostos apresentavam algum espanto, mas pelos motivos errados.

Ó Afonso, essa máquina é um bocado artesanal, não? — ironizou Bernardo. — Só tem a vantagem de não gastar eletricidade.

Agora é a minha vez — avisou Carolina, talvez encorajada pela aparente sensaboria da história de Afonso. — Havia uma miúda que vivia numa quinta e os pais incumbiam-na de várias tarefas, apesar da idade. Era frequente ir com o irmão numa mula buscar os ovos a outra propriedade agrícola. Ou levar a merenda a algum rancho de trabalhadores. Ou outra tarefa qualquer, que por esses princípios da década de 50 os adultos incumbiam as crianças. Até tinham um ditado: “O trabalho do menino é pouco, mas quem o despreza é louco”. Dessa vez, tinha chovido muito e a ribeira tinha subido. O caminho de regresso a casa passava necessariamente por aquela ribeira. E ponte era coisa que não havia. A travessia era sempre feita a vau, tanto por mulas, burros, cavalos, como por carroças e carros de bois. Não mais que uns dez metros de extensão, numa ribeira que, exceto no inverno, tinha sempre pequeno caudal e chegava a secar.

Também Carolina conseguia obter a atenção do grupo.

O rapazito, no comando das rédeas, incitou a mula a avançar ribeira adentro, como habitualmente. A água só lhe dava pelo meio da barriga, mas a força da corrente já era grande e a própria mula não conseguiu manter o rumo reto. Aos poucos, foi sendo arrastada alguns metros, para grande aflição dos miúdos, até que ficou empancada numas rochas que ocupavam parte do leito. Felizmente!

Uau! — fez Diogo. — Que história mais macaca! Não havia pontes, os miúdos andavam sozinhos em mulas… Isso foi em que planeta?

Acredito perfeitamente! — firmou-se Carolina. — Já vi fotografias daqueles tempos… eram inacreditáveis. As condições eram miseráveis, mas parece que toda a gente vivia assim. Imaginem dois miúdos de uns 10, 12 anos, rodeados de água, em cima de uma mula presa no meio de uma ribeira, que devia levar força e volume. E os pais, numa quinta a uns 2 ou 3 quilómetros, sem saber de nada. No meio da aflição, o miúdo, habituado ao campo e a safar-se dos seus apertos, conseguiu passar por cima do pescoço da mula, para o muro da borda, talvez com a ajuda de alguma rocha intermédia. Então deitou a correr para buscar auxílio.

Fez uma pausa, como que a abarcar o dramatismo da situação, perante o silêncio atento dos amigos.

Esta parte é a que me faz mais impressão. Posso pensar na aflição do miúdo, na corrida desesperada que deve ter feito para avisar os pais, mas, imaginem a miúda! O irmão foi-se embora e ela ficou ali sozinha no maior perigo, com o coração em papa, em risco de ser levada pela corrente. O que deve ter pensado, o que deve ter chorado! Quando o miúdo chegou finalmente ao pé do pai e, quase sem fôlego, lhe contou o que tinha acontecido, este saltou para uma égua em pelo e lançou-se num galope insano, numa aflição que não podemos imaginar. Aqueles minutos de galope só podem ter sido terríveis. Felizmente, chegou a tempo. Com a desenvoltura dos adultos, conseguiu retirar a miúda e abraçou-a, de olhos alagados. Iria agradecer tanto à Senhora das Necessidades! Depois desencaixou a mula dos rochedos e tudo acabou em bem, felizmente. Agora é só uma história que os miúdos, agora idosos e meus tios-avós, contam, quando se lembram dos tempos antigos.

Pessoal, já chega de histórias macabras — interrompeu Teresa, até ali calada e sem uma história de jeito para contar. — Vamos outra vez à água? O último é um charco de água suja.

Bora! — responderam todos. E desataram a correr para o mergulho refrescante.

Joaquim Bispo

*

Imagem: Camponês tirando água com picota para rega. Papiro. Reconstrução de um afresco da tumba de Ipi em Dayr al-Madinah, XIX Dinastia.

Instituto do Papiro, Cairo.

* * *

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4 comentários:

Muito bom amigo Joaquim Bispo, eu tive sorte, sabia nadar, teria morrido afogado....

Passaste por algo semelhante?
Abraço!

Comentei mas não aceitou o meu comentario.

Mas aceitou este. Há que insistir. :)

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