Vera
vivia num dos muitos bairros sociais de uma grande cidade. Não era um dos
melhores, mas também não era dos piores, os prédios eram relativamente
recentes, os moradores eram na sua maioria pessoas trabalhadoras e honestas e
os poucos elementos menos “próprios”, digamos, tinham tendência a manterem-se
em manada, sem incomodarem os vizinhos.
A
mãe de Vera trabalhava, como muitas outras mães do bairro, por isso a menina
estava habituada a tomar conta de si, apesar de ter apenas 9 anos. Bom, tomar
conta de si é relativo, a escola que frequentava era bem pertinho do bairro,
dava para ir e voltar a pé, quase sempre na companhia de colegas ou vizinhas.
Uma
vez por semana Vera ia com a mãe visitar a avó materna, que residia num bairro
central e antigo, num prédio de três andares e seis apartamentos em que já só
três estavam habitados. Depois aproveitavam para fazerem as compras semanais.
Era a sua distração semanal.
Ora
uma semana a mãe de Vera sentiu-se adoentada e cancelou a saída. Na semana
seguinte foi a mesma coisa. E sem que soubessem bem como, passaram-se cinco
semanas sem que a fossem visitar.
Vera
não conseguia deixar de pensar na pobre da avó, sem ter quem a visitasse ou lhe
levasse uns miminhos. E na sexta semana lá conseguiu convencer a mãe a deixá-la
ir sozinha. O seu argumento principal é que já era uma menina crescida, não era
um bebezinho de seis anos ou até de oito! E conhecia bem o caminho e os
transportes que tinha de apanhar.
Conseguida
a autorização da mãe, foi a correr comprar uns bolinhos à pastelaria da esquina
que meteu, juntamente com um pacotinho de chá e um frasco de compota na mochila
Frozen acabada de comprar. Enfiou o casaco novo que a mãe lhe fizera num belo
tecido vermelho escuro e que ainda não estreara porque o tempo tinha estado
demasiado quente, enfiou o gorro do mesmo tom e as botas de chuva de borracha
também vermelhas – era adepta ferrenha do Benfica – e pôs-se a caminho.
É
claro que a mãe lhe fez as mil recomendações do costume, não fales com
estranhos, não mostres o teu dinheiro (dez euros para as emergências),
limita-te a apanhar o metro e o autocarro do costume e sobretudo, não te
desvies do caminho: vai direta a casa da avó e volta do mesmo modo.
Ansiosa
por sair, Vera disse que sim a tudo, jurou e prometeu e foi de alma alegre e
passinhos apressados que saiu porta fora.
A
parte inicial até correu bem, havia uma estação de metro perto da escola, era
pois um trajeto a que estava muito habituada. E como só recebia um comboio, não
havia margem para enganos.
Os
problemas começaram quando quis apanhar o autocarro. A rua onde estava a
paragem que costumava usar com a mãe estava em obras e não conseguia ver
nenhuma indicação sobre o seu novo local ou até se haveria um. Depois de andar
um pouco à nora decidiu quebrar uma das regras e perguntar a alguém pelo seu
autocarro. As três primeiras pessoas de nada sabiam mas a quarta, uma senhora
idosa e carregada de sacos e saquinhos, disse-lhe que também o ia apanhar e que
podiam ir juntas, se ela quisesse.
Vera
ainda hesitou, mas era uma velhota, que perigo poderia haver? Foram pois lado a
lado em amena conversa, ou antes, com a menina a responder às perguntas cada
vez mais específicas daquela boa samaritana.
Após
umas voltas e reviravoltas lá chegaram à paragem mas aí, com grande espanto de
Vera, a até então tão prestável boa alma mudou de atitude e exigiu-lhe “alguma
coisinha” por a ter levado ao sítio certo. Felizmente o autocarro chegou
naquele momento e a menina conseguiu entrar rapidamente e ir para o fundo,
escondendo-se atrás de alguns passageiros.
Foi
com enorme alívio que viu, por entre corpos, a saída de quem achara tão
prestável umas duas paragens antes da sua.
A
sua paragem ficava a uns bons 800 metros da casa da avó, mas não a direito,
tinha de seguir por várias ruazinhas estreitas e que subiam bastante. E os
presentes para a avó já começavam a pesar-lhe nas costas.
Foi
pois um alívio quando um senhor muito bem posto e que seguia na mesma direção
parou e lhe perguntou se precisava de ajuda. Esquecendo por completo as
recomendações da mãe, disse que sim e passou-lhe a mochila. Mais leve agora,
recuperou a energia e foi tagarelando sem cessar durante um bom pedaço, falando
sobre a avó, o prédio onde esta vivia e os mimos que lhe levava.
O
senhor despediu-se no topo da maior subida, tinha coisas a fazer, disse. Vera
agradeceu-lhe e seguiu também ela o seu caminho. Mas como ia sozinha não
resistiu à tentação de ir explorar um pequeno jardim público que existia a um
dos lados e que a mãe, sempre apressada, nunca a deixara visitar.
Era
realmente muito interessante, pequeno mas com duas ou três estátuas bem giras,
árvores, muitos arbustos, algumas flores e uma vista magnífica. Encantada,
andou por ali a correr e a divertir-se, tendo pousado a mochila sob um banco.
Como não havia mais ninguém, achou que não tinha mal nenhum.
O
tempo foi passando e Vera até já tinha quase esquecido o motivo de estar ali
quando viu, pelo canto do olho, uma sombra em movimento. Virou-se e era um
miúdo talvez um pouco mais velho que ela que se dobrara para chegar à mochila.
Sobressaltada, desatou aos gritos e por sorte conseguiu afugentá-lo.
Mal
refeita do susto, reparou que já era tarde e pôs-se a caminho da avó com o seu
passo mais acelerado para cobrir o mais depressa possível a curta distância que
faltava.
Chegou
finalmente ao prédio, tocou à campainha e como sempre teve de esperar que a avó
tocasse no botão de abrir a porta. Esbaforida como estava, deu graças aos céus
por o apartamento ser no primeiro andar, uma vez que não havia elevado. A porta
estava entreaberta, como de costume, e Vera entrou depois de anunciar a sua
presença.
E
teve logo uma tremenda surpresa. O senhor gentil que a ajudara com a mochila
estava sentado no sofá ao lado da avó, com um ar de quem estava em casa. E
segundo parece, estava mesmo! É que a avó apresentou-o como sendo o seu grande
amigo, Filipe Alves.
Vera
estranhou nunca ter ouvido falar dele, mas como era bem educada cumprimentou-o
e deu à avó os bolinhos e outras coisas boas que lhe trouxera.
Mas
enquanto a avó estava na cozinha a preparar o chá do costume, Filipe convidou
Vera a sentar-se mesmo ao seu lado e toda a sua atitude mudou, tornou-se
insinuante, com pequenos toques e insinuações de que passariam a ver-se muitas
vezes, que ela era bem crescidinha e muito bonita, enfim, tudo coisas que a
fizeram sentir-se desconfortável.
Felizmente
a campainha tocou e como a avó estava ocupada, Vera foi prontamente atendê-la.
E nunca se sentira tão contente por ver a mãe!
É
que esta começara a pensar que a filha viria já de noite e mesmo adoentada
fizera um esforço e saíra para a ir buscar. E ainda bem que o fizera.
A
cena que se seguiu foi incompreensível para Vera pelo menos até ser mais velha.
Mas basicamente, o tal Filipe Alves não passava de um burlão que fazia amizade
com idosas solitárias, ficando-lhes depois com a maior parte das poupanças e
não só. Pior ainda, havia suspeitas de comportamentos indevidos com menores,
apesar de nunca ter havido provas concretas de nada.
Apesar
de nada poderem fazer em relação a ele, ficou decidido que a avó de Vera iria
passar uns tempinhos com a filha e a neta, para esquecer “o amigo” e que quando
voltasse a casa, para além da visita semanal de ambas, iria também ela ao
bairro de Vera a meio da semana para estar umas horas com a neta.
Luísa Lopes
Imagem feita com Quick Write
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