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sábado, 25 de março de 2023

A Paixão de Toní

 

Aqueles tempos não eram bíblicos, mas os fariseus e os humildes viviam juntos nas mesmas cidades, nas mesmas aldeias, nas mesmas ruas, como em todos os tempos. Não era a riqueza que fazia uns soberbos e néscios, nem a pobreza que fazia outros simples e sensatos.

A década de 50 atirou muitos jornaleiros para as cidades, a fugirem de uma agricultura em decadência. Digamos que foi esta a razão que fez Gregório e Rosinda, com pouco tempo de casados, deixarem a casa humilde de pedra à vista numa aldeia do interior e rumarem a um bairro-dormitório da grande Lisboa. Naquela, não havia muito para pôr na panela de ferro, habitante permanente e sossegada da pedra do lar, a um canto da casa; nesta também não, embora as paredes estivessem pintadas e a cozinha só tivesse panelas de alumínio.

Entre biscates incertos e desilusões de cidade, Gregório, aos poucos, foi-se deixando ficar pelos bancos das tabernas mais tempo do que o recomendável. Rosinda, igualmente frustrada entre limpezas de assoalhadas e reprimendas de patroas já esquecidas, elas próprias, das origens humildes, terá ido sendo atraída para maneiras de viver mais fáceis. Quem pode atirar a primeira pedra? Uma coisa leva a outra; o casamento não se aguentou. Sem grandes ralhos nem dramas. A chama partira, a vida familiar tornara-se outra coisa, mais mesquinha, mais sórdida, mais alienada. Gregório foi-se acomodando à precariedade das ocupações, desde que fosse dando para beber um copito.

Um dia, Rosinda resolveu voltar para a terra. Talvez a pensar numa vida mais modesta, mas menos constrangedora, talvez apenas a fugir do que já não queria. Quem sabe? Talvez com um pequeno pé-de-meia que daria para se aguentar algum tempo. Na aldeia tinha família. Alguma coisa se havia de arranjar.

Poucos dias depois, pela tardinha, Toní Alfazema, um janota de Lisboa apresentou-se-lhe à porta. A exigir-lhe que voltasse com ele para Lisboa. Que a Madalena também tinha vindo e estava à espera. Mas Toní insistia que queria o cordão de ouro que ela lhe roubara. E ameaçava-a. Teria ou não teria, ela negava. Ouvindo passos na rua, gritou. Por coincidência, era um seu irmão que vinha do olival. Não era momento nem juiz para avaliar verdades, propriedades nem razões. Um intruso ameaçava a sua irmã e isso só tinha uma resposta.

Toní trepou como pôde umas escadinhas de madeira e encontrou-se encurralado num sótão que nem dava para se pôr de pé. Sem mais saída, arrancou umas telhas e escapou para o ar livre. Não foi longe. O alarido crescia na rua. Naquele tempo, as ruas das aldeias ainda tinham habitantes. Em pouco tempo se juntou muito povo que deu caça ao estranho. Estava alapado num quintal próximo, junto a um galinheiro.

Os primeiros que o agarraram não lhe fizeram mal. Só queriam esclarecer as coisas. Se o tipo fugia, por alguma coisa seria. Rapidamente, a vozearia identificava o fugitivo como o malandro que desencaminhara a Rosinda. Seria um galifão destruidor de matrimónios ou um reles chulo que se agradava mais do dinheiro que as mulheres podiam gerar do que do seu corpo? Um ou outro, eram igualmente podridões andantes, tão longe dos valores sagrados da aldeia. Ou assim se apregoava.

— Está um carro de praça no largo da cruz. Não o deixem fugir!

Então, uns cuspiam-lhe na cara e davam-lhe bofetadas, e outros punhadas nas costas e na barriga. E gozavam:

— Adivinha quem é que te deu.

— Ela roubou-me um cordão — esbracejava o saco de pancada.

As mulheres também se chegavam e gritavam:

— Malandro! Velhaco! Vadio! Corrécio!

O cortejo atravessava lentamente as ruas escuras da terra. Os homens subiam a parada:

— Filho da puta; cabrão; paneleiro; chulo!

E iam “molhando a sopa”. Um deles aplicou-lhe um murro bem dado do lado esquerdo.

Toní foi ao chão pela primeira vez. Quando se levantou, ergueu os braços a pedir calma. Olhava em volta, perdido.

— Deixem-me ir embora. Eu não fiz nada. Ela é que quis.

Uma grande vozearia respondeu-lhe. Claramente, era indiferente. Aquele moinante desviara uma filha da terra para o deboche. Um fariseu tirou um fueiro de um carro de vacas, deixado no terreiro que atravessavam, e assentou-o, com força, no lombo daquele libertino, tentando exorcizar o medo secreto de que a sua mulher lhe fosse infiel.

Toní caiu pela segunda vez. Levantou-se a custo, muito dorido, com o temor no olhar. Claramente, não podia esperar compaixão daquela gente.

— Deixem-me ir embora, que eu nunca mais cá volto.

Mais varapaus foram aparecendo. A populaça enfurecida acompanhava condignamente Toní ao Largo do Calvário, onde o táxi o esperava, seguida por toda a canalhada da terra, que desfrutava a seu modo daquela festa inesperada. Saltando e berrando. A corrupção dos costumes, personalizada naquele meliante, era a justificação para a condenação por unanimidade. Mas talvez a dinâmica das multidões e os medos e ódios surdos para com o meio cosmopolita explicassem melhor tal ferocidade de comportamentos. Ninguém queria ficar sem fazer justiça. Mesmo à chegada ao Calvário, um cajado acertou de través na cabeça do bicho.

Toní desabou pela terceira vez. De visão enevoada ainda vislumbrou a salvação no táxi ali parado.

Agora a turba queria saber se o tipo do carro também era da pandilha. O taxista, de braços no ar, implorava, como se fosse o mau ladrão:

— Não me batam. Eu não tenho nada a ver com isso; só vim fazer um serviço.

Mas não se livrou de uns tabefes. E logo repararam em outra pessoa encolhida no banco de trás. Puxaram-a para fora. Tinha cara de mulher, dizia que era amiga da Rosinda, mas usava calças.

— Deve ser um paneleiro disfarçado de mulher — gritou um.

— Vamos despi-lo para vermos se é mesmo mulher ou um atravessado — lembrava-se outro, ideia muito acarinhada pela maioria da homenzarrada.

Logo a rapariga foi despida e toda a gente verificou as suas credenciais de mulher. Uma das tais, com certeza. O alarido da canalha baixou um pouco, que não dava para berrar e mirar como era o corpo nu de uma devassa de Lisboa, ao mesmo tempo. Nessa noite, as mulheres casadas da terra, sobretudo as de alguns fariseus, iriam ter de aceder a uma súbita e urgente inspiração dos maridos.

Tudo estava consumado. Para que se cumprisse o que está escrito no ditado que diz: “Cá se fazem, cá se pagam”. A malandragem de Lisboa tinha aprendido a lição. Podiam seguir. Entrou a rapariga, a cobrir-se como podia, com as roupas rasgadas; entrou também para o banco de trás Toní, sujo, rasgado e a deitar sangue da cabeça. Finalmente o motorista, a dar graças a Deus por conseguir escapar sem grandes danos, na pele e no carro.

Na estrada escura e interminável para Lisboa de finais da década de 50, Toní gemia, sangrava e desfalecia. Madalena consolava-o, sem sucesso. O taxista acelerava, apesar das inúmeras curvas da estrada. As horas passavam, mas nunca mais chegavam a Lisboa. Um pesadelo aflitivo, uma angústia mortal. Toní não aguentou. Morreu antes de Ponte de Sôr, tombado no colo de Madalena.

Os jornais regionais relataram a ocorrência de modo sucinto, a Guarda foi depois à aldeia, a perguntar os “quês” e os “comos”, mas sobretudo os “quens”. Mas toda a gente só soube dizer que foi o povo. E era verdade. Um povo mais do que outro, mas era verdade: foi o povo.

Joaquim Bispo

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Este conto foi um dos selecionados para a 39ª edição (maio/junho de 2023) da Revista LiteraLivre, em formato e-book:

https://cultissimo.wixsite.com/revistaliteralivre/selecionados

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Imagem:

Giandomenico Tiepolo, Cristo à Coluna, 1772.

Museu do Prado, Madrid.

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