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domingo, 22 de janeiro de 2023

O Laço da Perversão

 


Era Heitor o seu nome. Heitor, nome de doutor em medicina, direito ou física, nome de autoridade insofismável, nome de homem taciturno e silente, mas, ao conhecê-lo, homens e mulheres admiravam-se ao descobrirem um jovem sorridente e alegre, imaturo, avesso às soturnas insinuações do vocativo. Ria e gargalhava com facilidade, cantarolava em corredores e assoviava em elevadores, e nele era ainda mais contrária à severidade do nome o vício de, desde criança e desde o berço, espionar em buracos de fechadura. Voyeur, declarava no silêncio da tentação. Assim sou, voyeur, e incitava o fervilhar da saliva na língua, o estalar do céu da boca em calor.

Entretanto o voyeurismo, à semelhança dos demais fetiches, só se efetiva com o reconhecimento do ato – pois os crimes consumam-se através da revelação a terceiros, através do vínculo entre infrator e vítima, testemunha –, e como Heitor vivia em silêncio, como a tara ele não anunciava ou divulgava, decidiu revelar-se a uma amiga e cerrar o último nó de sua obsessão. Pois à Marilene confessou o fetiche, justo à Marilene, evangélica e casta, modelo de honestidade digno de irritar o mais severo dos deuses, e ao ouvi-lo ela então contorceu o rosto e rugiu.

É doença, disse ela. É doença.

Heitor, satisfeito e leve, falou de como era inofensivo, de como somente nos atos de voyeurismo sentia-se sadio e afortunado, de como a mente esvaía-se no nada e no nada mais, e de como ele, nos instantes de voyeurismo, não era algo ou alguém.

Mas é doença, garoto, disse Marilene. É doença.

Heitor prometeu não se entregar novamente a sua obsessão e falsamente jurou estar, com a confissão, curado. Eles abraçaram-se e distaram-se, e sendo um dos motivos do encontro a outrora afinidade entre ele e Marilene, constatou o esvanecer-se da amizade e do entendimento – qual o ego nos instantes da obsessão. Chegou em casa o jovem Heitor, banhou-se, deitou-se na exígua cama de solteiro e dormiu até ser despertado pelo tresloucado ritmo de seu coração. Sentou-se ele no limite do colchão e cumulou-se de julgamentos e críticas, censuras e condenações, e farto de acusar-se concordou, numa dessas súbitas e súteis percepções, com Marilene: era um doente.

Mas sou tão inofensivo, sussurrou um de seus teimosos recessos. Sou só de olhares.

Na manhã acordou com uma vaticinante enxaqueca, e ao vestir-se não abriu a janela ou desviou das sombras, não se uniu às insinuações do sol nas almofadas. Mais encaminhou-se Heitor ao escuro, ao florescer de um remorso nem tanto íntimo mas oriundo de influências exteriores, dir-se-ia o fantasma de suas contrições. Os dias seguintes Heitor exibiu um semblante de sombria desmotivação, segmentado em estrias e rugas, humor logo associado a ele, antes homem alegre e saltitante. Estranharam-no os amigos e conhecidos, e estranhou-se Heitor ao emagrecer, ao ser-se assim. Sentia-se, como relatou nas entradas de seu blog, criminoso, dos outros alienado, e acusou da crescente solidão o maior dos seus fardos, aos leitores descrevendo como assemelhava-se ela a uma ausência de reflexo. O voyeurismo pelo buraco da fechadura é uma farsa, escreveu ele. No mundo real não há dos meus, não há ninguém como eu. Quiçá o voyeurismo é a fronteira da solidão, registrou Heitor em última nota, momentos antes de ingerir uma vintena de medicamentos e encaminhar-se ao escritório, onde caiu de rosto na mesa e, alheio ao indiscreto olhar dos colegas, desmaiou.

Todavia, resoluto como todo viciado, não morreu.

Abandonaram-no na emergência de um centro clínico, e lá abandonaram-no vomitado e torto, os olhos abertos, vagos como galáxias a se extinguir em distâncias siderais. Acordou com mãos que o esganavam, cutucavam-no, mãos que ignoravam seus rogos e gemidos de culminante aflição. Exausto e cansado ouviu o ciciar de anjos ou demônios, as orientações sobre como deveria adormecer e sonhar, sonhar e adormecer, e ao acatar os conselhos dedicou-se a um sono obscuro, o sono dos nascimentos não satisfeitos, eterno até Heitor voltar a si e descobrir-se coberto de sondas, cateteres, curativos e amarras. Malgrado desorientado e a sós, ainda a sós, sobrevinha-lhe nesse claustro o desejo de a tudo olhar e observar, de a tudo ver, característica intrínseca ao homem de sua categoria. Heitor escrutou o dormitório e pouco avistou além da janela, pouco escutou além de um mecânico assoviar. Na porta chamou-o a fechadura, grande e antiga, sedutora, e nela vislumbrou a iluminação do cômodo ou corredor contíguo. Ali firmou o olhar, contemplou o símbolo de um passado e de um mesmo futuro, atento ao auspicioso cintilar dos vãos até estes escurecerem como se, do outro lado, alguém se movesse, curvasse e olhasse no buraco da fechadura, espiasse-o.

Disso soube de imediato.

Mesmo com o rosto recluso em sondas, sorriu.

Não mais estava a sós em seu mal.


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Erik K. Weber
Gaúcho.






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