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terça-feira, 9 de agosto de 2022

Os dois elefantes

 



A montra era pequeníssima e muito empoeirada, sendo difícil distinguir os muitos objetos que a atulhavam, contrastando com as muitas lojas e lojinhas daquela rua tão turística, modernas, limpíssimas e com escaparates obviamente saídos das mãos de especialistas. 

Mesmo assim, Sara decidiu entrar apenas por curiosidade. Sempre que visitava pela primeira vez um país gostava de conhecer o artesanato local, mas tentando o mais possível evitar “armadilhas turísticas”, dando preferência às que tinham um ar mais pobre, mas bem mais local. Por vezes comprava alguma coisa mas, na maior parte dos casos, só lhe agradavam peças demasiado caras para os seus poucos recursos ou demasiado volumosas para bagagem aérea ou, até, para o seu apartamento.

Mal passou a porta, foi forçada a parar. O interior era muito escuro, especialmente para quem vinha da luminosidade forte do exterior. Quando ao fim de uns bons minutos começou a distinguir formas, ficou fascinada. Por todo o lado havia estatuetas, vasos, quadros, máscaras, vitrinas cheias de pequenos objetos, tecidos e, até, plantas. Tudo misturado e amontoado para caber numa área em que um terço já seria demais. Poderia passar ali o dia todo que não veria nem metade.

A um canto, empoleirado num banco, estava o dono. Era um velhote baixo, de barbicha branca, que estava muito entretido a escrevinhar num enorme livro pousado numa pequena mesa à sua frente.

Nem levantou os olhos quando Sara entrou. Ou estava muito habituado a ter visitantes ou não lhe interessava saber o que queriam. Tendo esperado em vão um cumprimento, um aceno, um simples reconhecimento da sua presença, acabou por desistir e começou, muito simplesmente, a investigar as peças mais próximas da porta.

Havia coisas maravilhosas. A pequena loja era uma autêntica arca de tesouros, uma verdadeira gruta de Aladino. Infelizmente era tudo demasiado caro, a aparência desleixada da fachada não refletia de modo algum o que escondia. Mesmo assim continuou a explorar, avançando cuidadosamente pelos estreitos corredores irregulares deixados entre móveis e outras peças. Mesmo se não comprasse nada, pelo menos veria coisas bonitas.

Aproximava-se a hora do jantar e Sara tinha de regressar ao hotel, que ainda ficava um tanto distante dali. Decidiu, pois, ver apenas mais uma vitrina e depois desistir. E foi então que os viu. Estavam na prateleira mais alta, cobertos de pó e rodeados de peças um pouco maiores que quase os tapavam. Mesmo assim pareciam sobressair daquele ambiente escuro e poeirento: um par de pequenos elefantes.

Com cuidado, abriu a vitrina e retirou-os. Não tinham mais de um palmo de altura, com uma ligeira diferença entre eles. Tirada um pouco da poeira que os cobria com um dos lenços de papel que trazia sempre consigo, verificou que, para além da altura, afinal não eram iguais. Um era cinzento-claro, com alguns laivos quase negros, e o outro verde-escuro. Pareciam feitos de pedra-sabão e tinham uma expressão muito engraçada com a tromba virada para um lado e as enormes orelhas um pouco afastadas da cabeça, parecendo estar à escuta de alguma coisa.

Verificou a etiqueta com o preço, colada nas respetivas barrigas. Embora não fossem exatamente baratos, custavam bem menos do que as outras peças que vira. Mesmo assim estavam um pouco fora daquilo que pretendia gastar em compras supérfluas.

Ia colocá-los de novo na vitrina, quando algo a fez parar. Eram tão bonitos! E, pensando bem, até nem eram assim tão caros! Bastar-lhe-ia gastar um pouco menos no casino para os poder comprar sem estragar o seu orçamento de férias.

Ainda hesitou durante mais uns momentos, mas por fim decidiu comprá-los. Fechou a porta da vitrina e dirigiu-se para a zona onde estava o dono da loja. Este abandonou a sua escrita de muito má vontade, quase como se achasse que um comprador era uma intrusão desnecessária e indesejada, mas lá lhe embrulhou os elefantes e recebeu o seu valor total, é que perante tanta indiferença Sara nem se atreveu a pedir um desconto..

Chegada ao hotel, Sara mostrou-os aos companheiros de viagem, recolheu alguns elogios, não muito entusiásticos, diga-se de passagem, e depois enfiou-os no fundo da mala, esquecendo-os por completo durante o resto das férias. Só os voltou a ver quando desfez a bagagem ao regressar a casa.

Depois de os limpar muito bem e de lhes pôr uma camada fina de cera, colocou-os em cima da cómoda, mesmo à frente da cama, exatamente no ponto de união das duas cortinas de voile branco. Ficavam bem engraçados, o verde-escuro um pouco à frente do cinzento-claro, com as trombas voltadas para a janela, como se observassem o que se passava lá fora.

E a vida retomou o seu ritmo habitual. Sara andava ocupadíssima no serviço e em geral chegava a casa tão cansada que mal tinha tempo para algumas arrumações indispensáveis. E quando limpava o pó, fazia-o mecanicamente sem se deter em nenhum objeto em particular, limitando-se a manter tudo mais ou menos no sítio. Nunca mais olhara ou acariciara os seus elefantes, como fizera nos primeiros dias após o seu regresso.

Os meses foram passando e o Inverno chegou. A janela do quarto de Sara vedava mal, deixando entrar uma corrente de ar gélido, não havendo aquecedor que chegasse para remediar a situação. O quarto estava, por isso sempre muito frio. Todas as noites Sara lembrava-se que tinha de mandar arranjar a janela quanto antes. Enquanto se encolhia toda debaixo de um monte de cobertores, jurava que seria a primeira coisa que faria na manhã seguinte. Mas esquecia-se sempre ou só se lembrava ao domingo, quando fazia uma arrumação maior.

E os elefantes lá continuavam, no centro da cómoda, com a tromba virada para a janela e para o reduzido jardim do prédio, sem flores e sem folhas. Sara já nem se lembrava deles ou da pequena loja, escura e atravancada de coisas, onde os comprara. Tal como a recordação das férias que então passara, tinham sido postos de parte.

Um sábado à noite Sara foi a uma festa dada por uma colega de serviço. Encontrou pessoas que já não via há muito tempo e divertiu-se de tal modo que já era de madrugada quando regressou a casa. A noite estava mesmo muito fria, com um nevoeiro espesso a cobrir tudo. Chegou a casa tão gelada que foi logo a correr fazer uma grande chávena de café para se aquecer. Quando entrou no quarto lembrou-se da janela mal vedada. Apesar de ter deixado o aquecedor ligado, fazia quase tanto frio lá dentro como na rua. Resmungando contra si própria por se ter esquecido, mais uma vez, de chamar alguém para reparar a janela, lá se enfiou na cama, depois de ter acrescentado mais um cobertor grosso ao monte que utilizava habitualmente.

Esquecera-se de correr as cortinas e à luz acinzentada que o candeeiro da rua espalhava através do nevoeiro podia ver os dois elefantes de pedra-sabão, o verde-escuro à frente e o cinzento-claro um pouco mais atrás. Antes de adormecer recordou subitamente a pequena loja cheia de maravilhas onde os tinha comprado, mas foi só uma visão fugidia pois estava muito cansada e adormeceu quase logo.

À medida que a noite passava, Sara, sempre a dormir, foi-se enfiando cada vez mais debaixo dos cobertores. Nunca tivera tanto frio! Bem se enroscava, mas não havia meio de aquecer.

De repente, acordou sobressaltada. Parecera-lhe ouvir um ruído estranho dentro do quarto. Ainda ensonada, pôs a cabeça de fora dos cobertores e olhou em volta. Via distintamente os contornos dos móveis graças à luz que entrava pela janela. Pelo eu tom, a manhã não devia estar longe. Não fazia ideia do que a acordara, talvez algum carro a passar na rua, mas parecera-lhe ser dentro do quarto.

Não se notava nada de anormal. O pior é que se sentia bem acordada e seria muito difícil voltar a adormecer, sobretudo naquela atmosfera gélida. Deixou-se, pois, ficar simplesmente deitada, com a cara meia tapada pelos cobertores. Mesmo em frente via-se a cómoda, com os vários objetos dispostos no seu topo.

De repente deu um salto na cama. Os elefantes tinham desaparecido!

Espantadíssima sentou-se na cama, esquecendo o frio, concentrando o olhar naquela zona, que era a melhor iluminada do quarto por estar junto à sua única janela. Não, não era ilusão, tinham mesmo desaparecido.

Andaria alguém dentro de casa? Um assaltante? Mas porque teria tirado apenas os elefantes de pedra-sabão que, embora bonitos e engraçados, não valiam assim tanto? Faltaria mais alguma coisa?

Preocupada com a hipótese de ter um ladrão em casa, Sara saltou da cama, enfiou as chinelas e o roupão, que ficava sempre numa cadeira ao lado da cama, e começou a inspecionar o quarto. Não faltava mais nada! Só os pequenos elefantes!

Cada vez mais admirada, apoiou-se na cómoda para observar bem o local onde os vira anteriormente. Como a janela ficava mesmo em frente podia ver, também, o jardim. Este nunca fora bonito mas no Inverno era francamente deprimente: alguns canteiros vazios, duas árvores tortas e despidas de folhas e um caminho ensaibrado por onde se moviam duas manchas escuras.

Duas manchas escuras? Quem estaria no jardim àquela hora?

Debruçando-se um pouco sobre a cómoda, Sara espreitou pela janela.

Nem queria acreditar no que via! Os pequenos elefantes, os seus elefantes de pedra-sabão, que por qualquer razão não lhe pareciam agora tão minúsculos, caminhavam lentamente pelo caminho ensaibrado, o cinzento-claro à frente, o verde-escuro atrás. Dirigiam-se para o portão.

Sem sequer parar para pensar, Sara saiu do quarto e correu, corredor fora, até chegar à porta de entrada. Tinha de ir ver o que se passava.

Perdeu bastante tempo a abrir a porta, que estava bem fechada e trancada. Conseguiu, finalmente, abrir o último fecho e saiu para o jardim. Na sua precipitação, até deixou a porta aberta. Ela,  que era sempre tão cuidadosa!

Os elefantes estavam já a passar o portão que, aparentemente, alguém deixara aberto, sim, porque sem mãos eles não o teriam certamente feito. Sara precipitou-se, mas, quando lá chegou, já eles estavam do outro lado da rua, caminhando sempre no seu passo lento mas regular. E o seu tamanho não era ilusão, parecia mesmo que cresciam a cada passo que davam.

Sem bem saber o que fazia, Sara seguiu-os. Na esquina havia uma loja que vendia flores exóticas. Era uma loja pequena, mas sempre muito bem aquecida por causa do tipo de plantas que tinha. O par dobrou a esquina, sempre sem se apressar. Mas quando Sara atingiu o mesmo ponto parou, desorientada: não os conseguia ver!

Onde se teriam metido? O nevoeiro continuava, mas não estava tão espesso que não se visse uma boa distância em todas as direções. Intrigada, Sara encostou-se à montra da loja de plantas exóticas. Mal tocou no vidro começou a ver tudo a andar à roda. Mas que momento tão mal escolhido para ter uma tontura!

Fechou os olhos com toda a força esperando que passasse. Quando se sentiu um pouco melhor abriu-os de novo, mas voltou a fechá-los logo muito depressa. Devia estar a sonhar! Ou então continuava tonta!

Respirando fundo, lá se encheu de coragem para tentar de novo. Muito devagarinho foi abrindo os olhos, mas apenas uma pequena nesga. E sim, vira mesmo o que vira momentos antes, mas era IMPOSSÍVEL!

Rua e loja tinham desaparecido. Nevoeiro e frio também. Estava agora cercada de uma vegetação luxuriante e desconhecida, pelo menos para si, que pouco entendia de plantas. Mas o sol brilhava sobre as folhas muito verdes e as numerosas flores exóticas e coloridas e fazia bastante calor. Mesmo muito calor!

E ali estava ela, Sara, no meio daquele ambiente tropical, de camisa de noite de flanela, roupão de lã e chinelos quentinhos. Incrível!

Mesmo à sua frente abria-se um caminho estreito e sinuoso.

O chão parecia ser de areia branca e as plantas vinham mesmo até à borda, mas sem o invadirem. Como não sabia o que fazer nem onde estava, decidiu segui-lo. Mas foi forçada a caminhar com cuidado porque as pedrinhas que afinal constituíam o caminho magoavam-lhe os pés através da sola fina dos chinelos.

O calor era tanto que teve de tirar o roupão, nada adequado àquele ambiente. Mesmo assim continuava a sentir-se demasiado quente.

O caminho era tão sinuoso que só conseguia ver uma pequena distância à sua frente. Por isso, assustou-se tremendamente quando a vegetação alargou, surgindo uma grande clareira, terminada, ao fundo por uma parede rochosa. Um fio de água escorria pela ela e ia cair numa grande taça escavada no chão da clareira.

E ali estavam os seus pequenos elefantes mesmo à borda da taça. Pareciam estar a beber da água que escorria pela parede rochosa.

Sara começou a correr na direção deles mas logo parou, espantada, deixando cair o roupão que levava no braço. Os elefantes tinham começado a crescer a ritmo acelerado e, do tamanho de pequenos cães que tinham quando os vira antes de contornarem a esquina, estavam agora enormes. Por fim ficaram do tamanho de elefantes normais, mas mantinham as suas cores originais e viam-se os veios da pedra-sabão ao longo da pele, embora mexem-se orelhas e tromba, como se sondassem o ar.

Assustadíssima, Sara recuou para o carreiro tentando esconder-se no meio da vegetação. Os elefantes estavam agora virados para ela e pareciam estar à espera de qualquer coisa. Tinham a mesma expressão de expectativa que tanto agradara a Sara na pequena loja onde os comprara.

Ao fim de alguns momentos começou a ouvir-se muito barulho. Os elefantes deixaram de abanar as orelhas e ficaram muito quietos lado a lado, com o cinzento-claro um pouco mais à frente.

O barulho aumentou até que entraram na clareira diversos animais, leões, tartarugas, gazelas, búfalos e muitos outros. Pareciam-se com animais verdadeiros, desde que não se olhasse para as cores, que eram bem estranhas: uns eram verdes, outros castanho-dourado, outros ainda cor de leite, havendo-os também em cores berrantes, rosa, verde, amarelo, enfim, um autêntico arco-íris. Mas em todos se viam veios como os do mármore ou pedras semelhantes.

Felizmente, Sara conseguira esconder-se bem por trás do tronco de uma bananeira e nenhum dos animais deu por ela.

Quando já estavam todos na clareira, formaram um grande círculo com os elefantes no centro. Pareciam conhecer-se todos. Pelo menos tocavam-se e faziam uma algazarra tal que parecia uma reunião de velhos amigos que não se viam há uns tempos.

Finalmente, o elefante cinzento-claro levantou a tromba e deu um grande bramido. Fez-se imediatamente silêncio e todos se sentaram, ou deitaram, muito quietos. Tinha começado a reunião.

Sara, que já tivera demasiadas surpresas nos últimos minutos, nem se espantou por perceber tudo o que eles diziam. Pareciam estar a trocar impressões sobre os locais de onde tinham vindo. Nenhum era dali e alguns eram oriundos de países bem distantes, mas parecia terem algo em comum, todos tinham sido trazidos para este país de clima nada apropriado por alguém que os achara engraçados.

Mas quase todos tinham queixas em relação à sua situação atual. Uns queixavam-se de negligência e pó acumulado. Outros falavam de maus-tratos e mostravam cicatrizes e falhas que provavam o que diziam. Outros, ainda, diziam viver em recantos tão obscuros que ninguém dava por eles. Enfim, um nunca acabar de queixumes.

De todos os animais presentes só dois estavam satisfeitos com a vida que tinham: uma tartaruga de olho-de-tigre, muito luzidia e bem tratada, e uma coruja de malaquite, que parecia olhar para os restantes com um certo ar de superioridade.

Finalmente, chegou a vez dos elefantes e Sara. O elefante cinzento-claro, que parecia ser o dirigente da reunião, tomou a palavra. Tinha uma voz muito fina e baixa, que contrastava com o seu corpanzil e com o bramido que dera para iniciar a sessão. Mesmo assim, ouvia-se bem em toda a clareira e Sara prestou a máxima atenção ao que tinha a dizer.

- Meus amigos! Até agora tenho-vos escutado sem dizer palavra mas chegou a minha vez de falar. Pelo que ouvi, todos tendes queixas a apresentar, só dois estão felizes com a vida que têm. A tartaruga, que teve a sorte de ir viver com uma senhora de idade, que passa o dia a limpar e a polir, e a coruja porque foi ter a uma casa onde pensam que tem poderes mágicos. Embora algumas das vossas histórias sejam tristes nada ouvi que se compare com a minha. E com a do meu companheiro, claro, pois sempre formámos um par.

Ao ouvir isto o elefante verde-escuro tossicou modestamente e pareceu ficar envergonhado por ver que todos olhavam para ele, quanto a Sara, lá continuava muito escondida à beira do carreiro, ansiosa por conhecer a tragédia de que falava o elefante cinzento-claro.

- Quando nascemos tínhamos, como todos vós, grandes esperanças no futuro que nos esperava. Fomos criados com tempo e cuidado e esperávamos ser sempre bem tratados e estimados. Mas afinal, que nos aconteceu? Mal ficámos prontos, começaram por nos embrulhar em metros de papel, tão apertado que mal podíamos respirar, e fomos parar a uma caixa que já tinha tantas coisas que por pouco não fomos esmagados. E olhem que somos bastante resistentes!

Ouviu-se um murmúrio de assentimento. Os dois elefantes eram, de longe, os mais fortes animais presentes.

- Enfim! Sempre pensámos que ao fim de algum tempo as coisas melhorassem. Mas não! Quando finalmente nos retiraram daquela caixa e de todo aquele papel, onde é que estávamos? Nas mãos de um velhote distraído que nos levou para uma caverna escura e totalmente atulhada de artigos. E ali ficámos, anos e anos, cobertos de pó e cada vez mais encobertos por outras coisas que iam sendo enfiadas no nosso abrigo. Muita gente entrava e levava outros animais, expostos em condições mais favoráveis. Mas a nós, quem nos via? Até teias de aranha conhecemos.

Ouviram-se exclamações de horror. Afinal, nenhum dos outros animais passara por uma experiência tão horrível como a dos elefantes. Teias de aranha!

- Finalmente, um dia, conseguimos captar a atenção de uma das visitantes da caverna. Mas não foi nada fácil, deu-nos até bastante trabalho! Por pouco não nos colocava de novo no meio de todo aquele pó, abandonando-nos de novo ao nosso triste destino. Mas unindo as nossas forças. lá a convencemos a levar-nos.

Ao ouvir isto Sara recordou-se do modo como hesitara com os elefantes na mão, sem saber se havia de os comprar ou não. E, francamente, perante toda esta estranheza, já estava um tanto arrependida de não os ter deixado na vitrina. Pelo menos não estaria ali, no meio daquele calor, em camisa de flanela e chinelos.

Mas já o elefante continuava.

- Ficámos muito contentes, é claro. Íamos, finalmente, ser bem tratados e apreciados, embora tivéssemos de fazer novamente uma viagem em condições desagradáveis, mas era isso inevitável se quiséssemos chegar ao paraíso. Mas como nos enganámos! Quando chegámos ao nosso destino, fomos postos num sítio sem graça nenhuma, tendo como única paisagem um pequeno terreno com duas árvores quase sem folhas e algumas flores raquíticas. E nem respeitaram as hierarquias. Eu, o mais velho fui colocado atrás do meu companheiro!

Ao ouvir isto o elefante verde-escuro mostrou-se ainda mais envergonhado e voltou a tossicar, nervosamente. Sara estava indignadíssima por ouvir chamar ao seu quarto um sítio sem graça nenhuma, esteve mesmo para sair do esconderijo e protestar contra tal injustiça, mas enquanto se decidia, o elefante recomeçou o seu discurso.

- Ainda se nos tratassem bem! Mas não. De vez em quando tiram-nos o pó, à pressa e de qualquer maneira. Uma vez até me deixaram cair desastradamente, vejam este risco aqui de lado. E ninguém nos aprecia ou admira, ninguém nos toca, sequer, sem ser para a tal pseudolimpeza. É claro que o mesmo acontece a muitos de vós. Mas o pior ainda está para vir.

Neste ponto todos os animais se aproximaram mais e arrebitaram as orelhas para ouvir melhor. Que mais teria acontecido?

- Um dia, o frio começou. E que frio! Exatamente no local onde estávamos havia uma corrente de ar que nos gelava até às moléculas, capaz de nos transformar em blocos de pedra, se não o fôssemos já. Dia após dia o frio aumentava e ninguém fazia nada para o minorar ou para nos proteger. E quando tentávamos desviar a atenção do frio que nos trespassava, o que víamos? O tal terreno, que cada vez tinha um aspeto pior, ou a nossa tratadora que até parecia uma toupeira sempre a resmungar e a enfiar-se em tocas.

Sara sentia-se cada vez mais indignada, embora fosse forçada a reconhecer, bem no íntimo, que o seu elefantezinho até tinha uma certa razão. A indignação dos animais também aumentava, mas por outras razões, é claro! Todos pareciam concordar que a história do elefante era a pior de todas. Começaram todos a falar ao mesmo tempo e a algazarra era tal que Sara teve de tapar os ouvidos. Mesmo assim, era impossível não os ouvir.

Ao fim de algum tempo o elefante cinzento-claro lançou novo bramido e todos se calaram. Depois de tossir para aclarar a voz, um tique irritante que parecia ser muito seu, prosseguiu num tom elevadíssimo e muito agudo.

- Meus amigos! Isto não pode continuar. Não podemos deixar que nos maltratem assim sem nada fazermos. Por isso convoquei esta reunião, temos de arranjar um plano para nos vingarmos.

- Sim! Vinguemo-nos! Vinguemo-nos!

Todos os animais berravam o mesmo, até a tartaruga e a coruja que não tinham histórias tristes para contar, mas pareciam ter sido arrastadas na onda geral.

O barulho era tal que Sara começou a sentir-se atordoada. Sem se importar de ser vista, começou a correr pelo carreiro por onde viera, abandonando o roupão. Mas via tudo a andar à roda e acabou por cair no chão, desmaiada. Quando voltou a si sentiu um grande peso em cima do corpo. Deu um grito, pensando que um dos elefantes estava a tentar esmagá-la. Mas quando abriu os olhos, muito a medo, viu que estava na cama e o peso era dos cobertores.

Afinal fora apenas um pesadelo! Nunca mais beberia café de madrugada.

Satisfeita meteu-se de novo debaixo dos cobertores e adormeceu.

Os elefantes continuavam em cima da cómoda, o cinzento-claro à frente, o verde-escuro atrás, com a tromba afastada da janela e as orelhas muito juntas à cabeça. Mas, mentalmente, deixou a si mesma o recado firme de resolver definitivamente o problema da janela e, porque não, de inverter a posição dos seus dois pequenos elefantes, não fosse o diabo tecê-las!


Texto e foto: Luísa Lopes 




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