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quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Sarapatel — O making of

 

O hemisfério direito e o hemisfério esquerdo são convocados para criar uma história a dois toutiços. Estabelecem as ligações neuronais habituais e cada um concentra-se nas competências de que dispõe, para dar a melhor contribuição possível.

«Qual é o desafio?», pergunta o hemisfério direito, inquisitivo, sempre a querer criar um mapa geral do problema.

«Escrever uma estória a partir de uma especialidade gastronómica. O protagonista ou a adora ou a detesta. Há que caracterizar a personagem física, psico e sociologicamente», esclarece o hemisfério esquerdo, na sua postura expositiva, analítica e racional.

«Que prato há-de ser?», pergunta o direito, a querer dados para a intuição trabalhar.

«Feijoada, arroz de pato, caril de frango, cabidela de leitão…»

«Sarapatel!» — A opção surge, fulgurante. Parece uma boa ideia.

«Ok. Sarapatel está bem! Sabes que o sarapatel é o laburdo beirão que foi levado pelos Portugueses para o Mundo? A versão goesa foi à Índia e, caldeada com as tradições gastronómicas indianas, voltou das colónias portuguesas picante», explica o esquerdo, sempre explanatório.

«Está bem!», despacha o outro. «Sei é que gosto de sarapatel, do seu picante, da sua sensualidade.»

«É um prato cristão. Usa porco, que a verdadeira comida indiana não tem. São miúdos de porco — fígado, toucinho, sangue, rim, coração, outros miúdos — cozinhados com condimentos indianos e servidos com arroz também aromatizado.»

«Gosto do molho a regar o arroz.» — O direito parece mais interessado nas impressões sincréticas complexas.

«Ok. O protagonista adora sarapatel.»

«Isso significa que é um tipo com gostos ecléticos.»

«Boçal, hedonista, promíscuo», não deixa de acrescentar o analista.

«O que é que uma coisa tem que ver com a outra?»

Nelson pediu mais uma cerveja, a dar tempo à inspiração. Seguiu a empregada de cabelo azeviche com o olhar.

«Voyeur!» — O seu hemisfério esquerdo não lhe dá tréguas.

— Este restaurante já tem muito tempo? — perguntou Nelson.

— Está aberto há dois anos. — O rosto da empregada mostrava uma simpatia que não dependia da função. — Mas eu só cá estou desde o verão.

«Sabes para onde vamos?», quer saber o hemisfério esquerdo.

«Não. Deixamo-nos ir. Partimos de um estímulo e depois vamos desenvolvendo. Às vezes, chega-se a resultados interessantes.»

«Eu acho que devíamos dirigir-nos para um determinado resultado.» — O esquerdo quer programar tudo. «Não gosto de escrever à toa. O mais provável é resultar uma prosa sem foco, sem mensagem, sem interesse.»

«Tens alguma ideia?»

«Não…! Ok, então vamos lá experimentar ir ao sabor dos acasos, das tuas associações de ideias, tateando no escuro, sempre sob pressão da verosimilhança e da relevância» — concedeu.


Carlos Gabriel era doido por sarapatel. Todas as quintas-feiras se sentava pontualmente ao meio-dia e meia num pequeno restaurante de comida goesa, ali junto ao Hospital de São José. O sr. Xavier já lhe reservava o lugar e a dose.

Mas, naquele dia, tudo estava a correr mal a Carlos Gabriel. Pediram-lhe umas fotocópias já em cima da hora, teve de substituir o cartucho de toner e saiu da empresa atrasado. Quando chegou à estação de Metro do Campo Pequeno, estava o comboio a partir. Foi por uns vinte metros que o não apanhou. Esperou dez minutos até chegar outro. No Marquês, a mesma coisa: ele a descer as escadas a correr e a ouvir o comboio para a Baixa a arrancar.

«Boring!», alerta o direito.

«Eu bem te avisei!»

Sentiu-se desanimado, quase deprimido. Uma sensação de vazio apoderou-se-lhe do peito. Ficou-se a meditar no que é que estes percalços podiam significar. Desde pequeno que não descartava uma vaga crença em que os deuses ou um anjo-da-guarda lhe causavam deliberadamente pequenos contratempos para o protegerem de maiores malefícios. Pensava, por exemplo: Se calhar, tropecei naquele passeio e esfolei o joelho para que me atrasasse os segundos suficientes para não ser atropelado mais à frente na passadeira, por aquele maluco que passou a acelerar.

«Isto devia ter mais ação!» É a vez de o esquerdo se queixar.

«Pois, mas como?»

Quando, passados mais dez minutos, entrou na carruagem de Metro, estava mais calmo, mas aborrecido por ir atrasado. O sr. Xavier era tão simpático por lhe reservar a mesa, que sentia que tinha a obrigação de chegar à hora habitual. Saiu nos Restauradores. Em passo ligeiro, esgueirou-se rapidamente por entre as pessoas que flanavam pelas Portas de Santo Antão. Quando começou a subir para São José, o coração batia-lhe descompassadamente no peito.

«Não arranjas uma surpresazinha que seja?», impacienta-se o esquerdo, mas sem soluções.

«Espera, surgiu-me uma ideia…»

Entrou no Pérola do Índico quase à uma da tarde. O seu lugar habitual estava ocupado. Estava lá sentado um tipo magro de meia-idade, de óculos e fato coçado, que saboreava um sarapatel com trejeitos de enorme deleite. Tinha os olhos semicerrados e a boca fechada executava movimentos ondulatórios de interiorizada volúpia. Aquele rosto era-lhe familiar, tão familiar. Era… era ele! Ficou-se pasmado a olhar para aquela figura que comia, alheada de tudo e todos. Era ele próprio. Como é que podia ser? Sentiu uma náusea de desconforto, acompanhada de um vago repúdio pela imagem de lascívia que aquele rosto — o seu? — revelava, ao comer.

Movido pela curiosidade, aproximou-se. O outro, quando sentiu a luz a ser-lhe tapada, abriu os olhos. Com um vago sorriso de desculpa balbuciou:

— Desculpa, vim andando!

— Mas, como?

— Apanhei um táxi!

— Não é isso. Quem é você…?

«Esta foi gira. Sempre quero ver como vais descalçar esta bota», diverte-se o hemisfério esquerdo.

«Não sei como. Vim aqui ter, mas estou perdido.»

Alguns dos outros clientes já tinham reparado nas incríveis parecenças dos dois e o sr. Xavier — o dono do restaurante — aproximava-se com ar intrigado.

— Queres mesmo saber? Há coisas que é melhor não sabermos. — O estranho parecia dominar a situação.

— Não me assuste. O que é que se passa aqui?

— Antes de mais, senta-te! Ó sr. Xavier, é mais um sarapatel, se faz favor.

Carlos Gabriel sentou-se à mesa em frente de si próprio. Num vislumbre, associou a situação à que vivia todas as manhãs em frente ao espelho.

— O sarapatel está bom? — perguntou, sobretudo para comprovar que o momento em nada se assemelhava ao da simetria dos espelhos.

— Divinal. Mas acho que hoje a Kahlía abusou do picante.

— Kahlía?

— Sim, a cozinheira indiana. Não me digas que não sabias o nome dela! Já algum dia reparaste bem como é lindíssima!?

Carlos Gabriel rodou a cabeça para a esquerda, para a abertura pela qual se via parte da cozinha. Kahlía estava de costas na azáfama da preparação das travessas. A sua silhueta era insinuante, os cabelos negros afloravam na orla da touca. Quando Carlos Gabriel se preparava para esperar uns momentos que Kahlía se voltasse, sentiu um ruído do outro lado da mesa. Os trejeitos na face do outro, que há pouco eram de prazer, tinham-se transformado em esgares de sofrimento. Segundos depois tombava e esparramava-se no chão.

Sem saber o que fazer e ainda menos o que pensar, mas apesar de tudo aflito pelo outro — por si? — gritou para os circunstantes:

— Ajudem! Chamem um médico! Liguem para o hospital!

Enquanto de relance corria o olhar pelos atarantados clientes que se apressavam a prestar ajuda, pareceu-lhe perceber um sorriso subtil no rosto da bela Kahlía.

«Uou! E agora? A história está um bocado curtinha, mas podíamos ficar por aqui. Dávamos uma explicação qualquer, desde que fosse verosímil e pronto. Tem mistério, uma surpresa, uma insinuação…»

«Mas, está tão inacabada... E há aqui pano para mangas! Agora é que a arranjámos bonita!»

«Não dizer tudo também tem o seu encanto. Como numa pintura em que o nosso olhar procura identificar e completar as formas pouco explícitas. Numa narrativa, pode ser o leitor a juntar as pontas, se tiver pistas suficientes.»

«Eu preferia uma história que intuísse porque é que estes dois são iguais e o que se passou com o duplo de Carlos Gabriel. Foi envenenado? Devíamos treinar mais vezes continuações de histórias já desenvolvidas.»

«Talvez. De qualquer modo podíamos tentar continuar pelo mesmo processo que nos trouxe até aqui.»

«Não acredito que consigamos. Repara que nos enredámos em complicações, sem saber as razões para elas. Se tivéssemos um plano desde o início, já sabíamos o ponto de destino e era só preencher o itinerário com peripécias.»

«Achas que as criaríamos, ou íamos a correr para o clímax da história, sem enriquecê-la com pormenores que, como sabes, é onde Deus se esconde?»

«Bem, a questão do possível envenenamento faz uma ligação perfeita com o pressentimento de Carlos Gabriel no Metro. Aliás, foi por causa daquela superstição que surgiu a ideia do potencial envenenamento, como sabes.»

«Sim, eu sei é que foste tu que deduziste essa ideia A partir dos elementos que eu pus…»

«Um escritor deve ser como um Sherlock Holmes que deve ir deduzindo os desenvolvimentos a partir dos acontecimentos anteriormente narrados e a partir da personalidade das personagens e da sua interação.»

«Então, disso tratas tu!»

«Ok, não amues. Vê o que achas disto:»

O Hospital era logo ali. Pouco depois chegava uma ambulância e nela seguiu o outro. Carlos Gabriel ficou-se a caminhar na rua, para trás e para a frente, dividido literalmente entre a recém-adquirida preocupação por aquele ser igual a si e a necessidade de encontrar explicações para tudo o que lhe estava a acontecer.

No dia seguinte foi ao hospital. Não encontrou o duplo. Tinha tido alta, disseram-lhe. Consegue saber que não foi envenenamento; só um mal-estar. No restaurante não se lembram de dois sósias, só do desmaio dele mesmo. Quando regressa ao emprego, apercebe-se que o duplo já andou por ali a falar com colegas. O mesmo aconteceu no supermercado perto de casa. Aparentemente, o sósia frequenta os mesmos locais, mas tem um relacionamento mais caloroso com as pessoas, que, equivocadas, dispensam agora a Carlos Gabriel um tratamento mais cordial.

O tempo passa, mas Carlos Gabriel não volta a encontrar o incerto duplo. Começa a desconfiar que não existe um sósia, mas sim uma espécie de dupla personalidade própria. A metade “carlos” de Carlos Gabriel comandará a parte das responsabilidades sociais, na sua postura compenetrada de bom funcionário, pontual, atento às regras, pouco disponível para o contacto social. A metade “gabriel” de Carlos Gabriel é amiga da pândega, dos prazeres da mesa e da carne, desleixa os compromissos, é sociável e brincalhão.

Provavelmente, os dois aspetos da personalidade sempre conviveram, mas de costas voltadas. Agora, aceitando-se mutuamente, cada um dá espaço ao outro para que assuma a sua maior competência, conforme a peripécia da vida em que estão envolvidos.

Nelson olhou para o relógio. "São horas de ir embora", pensou. Tateou o bolso interior do casaco, retirou uma palete de comprimidos, tomou um com o restinho da cerveja e pediu a conta.

«Está acabada, não achas? Tu é que fizeste a maior parte do trabalho, mas tens de admitir que dei ali uma ajuda», reclama o hemisfério direito.

«Sim, claro que admito. Várias e boas. Aliás, a relação daqueles dois faz lembrar o nosso relacionamento...»

«Não digas isso, senão lá vêm assegurar que todas as histórias são autobiográficas...»


Joaquim Bispo

*

Imagem:

Paul Klee, Senecio, 1922.

Museu das Belas Artes, Basileia, Suíça.

* * *


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