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domingo, 19 de junho de 2022

Carta ao amanhã


 

Pouca coisa me consome hoje em dia. Já vivi bastante; o suficiente, pelo menos, para aprender a me safar das barbaridades. Alertei amigos e familiares sobre os indícios de uma grande crise, ainda em 2019, mas quase não me ouviram. Falo “quase” porque Caetano, meu filho do meio, tão atento quanto o pai, reservou uma quantia considerável para atravessar a tempestade. Com ele não me preocupo. Cássio é diferente, sempre no estilo “de bem com a vida”, mas, numa dessa, levou um bocado do meu dinheiro – claro, não poderia deixar que ele e minhas netas passassem aperreio. Às vezes penso em que que eu errei. Na criação, não faltou nada: curso de inglês, karatê, judô, skate, surfe e o escambau. Eu viajava muito, a negócios, contudo desembolsava e dava à minha esposa a quantia imprescindível para o conforto. Julita falava que exagerava na dose; mas eu, ao contrário, pensava – e penso – que amor nunca é demais. Faltou falar umas palavrinhas sobre a Carmen, minha filha mais velha. Veja como é engraçado, ela é a moderação em pessoa; não excede nas compras; tem uma casa modesta e aconchegante; possui, para ela e o marido, um único carro; e tem um único filho, o Ricardinho. Com ela também me preocupo, justamente porque não sei o tamanho de sua carência – se sei, é quando está com a corda no pescoço. Para ela, igualmente, distribuí uns trocados nessa pandemia. Meu pai me dizia que não precisava que o filho fosse “doutor”, mas não tinha negócio com a falta de caráter, desumanidade e vagabundagem. Disso não posso me queixar; todos deram para gente. A questão é que, agora, quando deveria estar usufruindo o meu restinho de vida, tenho de tapar os buracos de alguns descoordenados. Não os culpo, já que não vivem a reclamar da vida, não passam miséria e não devem a um agiota, por exemplo. Caetano, para variar, tem uma cisma com Cássio; afirma que é mimado e que nunca cresceu. Quando Cássio comprou uma caminhonete quatro por quatro, ele foi o primeiro a recriminar: “Mas papai, ele ao menos tem dinheiro para pagar o IPVA? Isso vai sobrar para o senhor!”, falou trancando os dentes de raiva. Eu o acomodei na poltrona, pedi que relaxasse; que Cássio é desorganizado, não há dúvida, mas nunca chegou com um rombo para eu cobrir. E ainda argumentei que minhas netas, suas filhas, eram meninas muito centradas, já trabalhavam e viviam bem; poderiam dar um acocho no pai, se e quando fosse preciso. Carmem tem um jeito quieto e cordial, que, felizmente, apazigua os ânimos. Soube da confusão do bendito carro e disse que, se sobrasse algum pepino, ajudaria a descascar. Coitada, não teria como. Contrairia empréstimo? Não sei que mágica faria. Caetano fala que o caçulinha é o protegido, que até a irmã “paga de mamãezinha, depois da orfandade do menino”. Eles não sabem; não precisam saber. Há um segredo escondido a sete chaves, de que só terão notícia quando eu morrer. Não os deixarei largados. Priscila Neiva, a minha advogada e querida sobrinha, sabe a chave do “cofre”. Poderão até sustentar três gerações, se quiserem. Não sei se faço mal juízo. Também, não vou me culpar por isso. Já cansei de peso na consciência, de queixa disso e daquilo. Sou razão, Julita dizia; mas muito mais coração. Espero e rezo para que a minha descendência possa viver em paz.


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