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segunda-feira, 13 de junho de 2022

 

O lugar 666

 

O passageiro olhou para o bilhete de comboio que tinha acabado de comprar e leu o número inscrito no canto superior esquerdo:

Carruagem - 6/Lugar - 66

Entrou na carruagem indicada e caminhou ao longo corredor, seguindo a sequência numérica dos lugares.

…; 60; 62; 64; 666; 68, …

Notou que a sequência se tinha quebrado e viu que o número afixado no cimo da janela, era, não o 66, mas o 666.

Não ficou muito satisfeito com o que acabara de ler, porque tinha em tempos ouvido dizer que aquele número era “o número da besta”, que tinha ligações com o mal. 

Logo numa Sexta-Feira 13 havia de ter calhado a este viajante o número maldito em má sorte. Embora não se tivesse em boa conta nestas coisas de crendices e de maus fados, ficou preocupado com aquele presságio um pouco sinistro. Ainda pensou em não embarcar, mas pôs de parte a ideia, porque não seria um número, por mais conotações maléficas que lhe atribuíssem, que o iria impedir de fazer aquela vigem.

Olhou uma vez mais, olhou ainda outra, hesitou um segundo e encolheu os ombros. Arrumou a bagagem e sentou-se. Já estava bem acomodado na sua cadeira quando sentiu um calafrio a percorrer-lhe o corpo. Parecia que por ali tinha passado uma corrente gélida.

Era tão estranho sentir aquela corrente de ar, como era estranho ver-se aquele número na marcação de lugares.

«Talvez aquela marcação se devesse a alguma maldosa brincadeira, em vez de 66, com toda a certeza, escreveram 666».

Satisfeito com a sua própria explicação, que arrasava qualquer espécie de maquinação diabólica, fechou os olhos, adormeceu e sonhou.

Um barulho aterrador acordou-o. Assarapantado olhou à sua volta e não viu ninguém. Era o único na carruagem.

Ainda meio baralhado com tudo o que lhe estava acontecer lembrou-se do sonho que então tivera:

Tinha sido apanhado por um fenómeno cósmico que o atirara para um buraco negro que, ao fechar-se estrondosamente, o tinha encerrado num outro universo.

E foi esse enorme estrondo que o tinha acordado.

A verdade é que, para ele, continuava ali sentado no lugar 666 e não num outro qualquer universo. A verdade é que ele estava ali a olhar para a estação que, apesar de estar numa zona de penumbra, dava para concluir que estava lá, o que era a prova provada de que tudo não passara de um medonho sonho.

Olhou para o relógio de pulso e viu que eram 20.00.

− Não pode ser! – o relógio parou. Esta era a hora da partida e já estamos a viajar há algum tempo.

O comboio arrancou e continuou a sua marcha. A paisagem corria em sentido contrário e a estação ficou lá para trás. Sem paragem e a alta velocidade, não dava tempo para ver bem as horas no relógio da gare. De relance e num momento fugaz pareceu-lhe ao passageiro que marcava 21 e qualquer coisa.

«Que merda, o comboio não parou e além disso passou tão depressa que não deu para ver nada. Fica para a próxima, porque essa tem paragem obrigatória.»

Num silêncio cósmico em que aquela carruagem se encontrava, ouviu vozes vindas de algures, pareciam conversas desgarradas, ouviu risos e outros barulhos intercalados com tempos de silêncio. Ouviu também passos a circularem e até um grito, talvez de alguma pessoa que se tenha ferido. Admirado levantou-se e percorreu a carruagem espreitando para todos os lugares, mas não viu ninguém.

«Talvez os barulhos venham de alguma das outras carruagens. É isso, são conversas dos outros passageiros».

Entretanto o comboio que se aproximava da estação começou a abrandar e imobilizou-se, ficando a carruagem do nosso viajante mesmo em frente do relógio pendurado na parede.

Eram 22 horas e 30 minutos.

Ouviu-se o característico som do abrir da porta, passos, o rodar de malas, vozes, mas não se viu ninguém a entrar na carruagem. Depois o barulho característico de uma porta a fechar-se. A seguir uma voz no altifalante avisou de que o comboio iria iniciar a sua marcha.

O absurdo de tão insólita situação é que entraram passageiros, mas ele continuava sozinho naquela carruagem. Era tudo tão estranho e assombroso que o solitário passageiro começou a ficar muito assustado.

«Se não estou a sonhar estou a ficar maluco. Vou-me já embora daqui. Era o que já devia ter feito há muito tempo. Tenho de ir à procura dos outros.»

Em vão procurou em todas as carruagens. Os bancos completamente vazios sucediam-se uns aos outros. Pelo visto, ele era o único naquele comboio, apesar do barulho do abrir e fechar das portas, do arrastar das malas, dos risos e das conversas ouvidas. Nem sequer o revisor andava por ali.

«Onde estão as pessoas que acabaram de entrar? desapareceram sem deixar rasto»?

Desesperado, começou a gritar bem alto na esperança de ser ouvido. Mas só se ouvia o eco dos seus medos.

Aterrado, dirigiu-se à carruagem da máquina à procura do maquinista, mas deparou com a porta fechada que não se abriu, apesar das fortes e raivosas pancadas e pontapés. Parecia feita de aço indestrutível. Talvez aquele comboio também não tivesse maquinista, talvez viajasse em piloto automático, talvez fosse um comboio fantasma.

O viajante correu para a porta e tentou rodar o manípulo. A porta continuou cerrada. Com toda a sua força voltou a puxá-la, mas tão grande esforço resultou em nada. Em vão descarregou toda a sua fúria e medo no puxador. Vendo que a sua tentativa de abrir a porta era infrutífera tentou partir o vidro da janela mas constatou que ele era à prova de destruição.

«Atenção senhores passageiros o comboio estacionado na linha número três vai iniciar a sua marcha, atenção à sua partida». ─ ouviu-se.

─ Socorro! ─ berrava o passageiro, batendo nos vidros e gesticulando angustiadamente para quem estava na gare, mas ninguém parecia estar a vê-lo. Num último desespero, correu para o alarme e puxou-o violentamente. Nada aconteceu, o comboio continuou a sua marcha.

«É tenebroso. Isto não pode estar a acontecer.»

Aquele passageiro não sabia que o destino lhe tinha comprado o bilhete maldito. Também não sabe que nunca chegará ao seu destino. Esta será a sua eterna viagem. Quando adormeceu, o sonho que sonhou levou-o para uma fenda que se abriu entre o futuro e o passado e a sua viagem passou a fazer-se numa dimensão contrária. Se entretanto não se verificar um fenómeno cósmico inverso que o liberte daquela prisão viajará sozinho até á eternidade.

 

 

 

Não ficou muito satisfeito com o que acabara de ler, porque tinha em tempos ouvido dizer que aquele número era “o número da besta”, tinha ligações com o mal. 

Logo numa Sexta-Feira 13 havia de ter calhado a este viajante o número maldito em má sorte. Embora não se tivesse em boa conta nestas coisas de crendices e de maus fados ficou preocupado com aquele presságio um pouco sinistro. Ainda pensou em não embarcar, mas pôs de parte a ideia, porque não seria um número, por mais conotações maléficas que lhe atribuíssem, que o iria impedir de fazer aquela vigem. Munido do bilhete, dirigiu-se à carruagem e entrou.

 

 

 

 

 

 

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