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quinta-feira, 9 de junho de 2022

O Psicólogo

 


Estou a dizer-vos que confesso! Sim, entrei à socapa em casa da D. Joana, já vos disse isso dúzias de vezes! Porque não prestam atenção?

Está bem, não se exaltem, volto a contar-vos tudo. Mas parem de falar em roubos ou ataques, não sou nada dessas coisas e isso só prova que não me têm escutado. Eu, atacar a D. Joana! Francamente!

Começando pelo princípio – e diga ao seu colega ali atrás que pare de revirar os olhos ou quem se exalta sou eu – a culpa é toda do psicólogo que consultei por insistência da empresa. Como se andar um pouco stressado matasse alguém! Mas são os tempos em que vivemos, uma reação mais viva, umas frases menos apropriadas, digamos, e pronto, psicólogo com ele! Ainda tentei resistir, mas mudaram-me para a digitalização de décadas de ficheiros e ao fim de uns dias de uma tarefa chatérrima acabei por ceder.

E lá fui eu três horas por semana sentar-me no consultório de um tipo qualquer que nem sequer fingia estar interessado no que eu dizia. Não que eu lhe contasse a verdade, pelo menos não a verdade toda, que tinha ele a ver com os meus problemas maritais, por exemplo? Ou com a minha infância?

Não, limitava-me a mencionar uma vaga insatisfação com a vida, uma certa desilusão por os meus sonhos de criança não se terem concretizado, enfim, toda uma série de lugares comuns que ouvia constantemente aos meus colegas de trabalho, os tais que se tinham sentido tão ofendidos pelas minhas reações à sua estupidez e choradinhos constantes.

Francamente, nem me tinha apercebido de que lhes prestara tanta atenção, era sempre a mesma coisa, a mesma atitude de vítima, o mesmo baixar de braços perante tudo o que fosse um pouco mais forte do que eles ou que lhes pudesse causar danos, enfim, um nunca acabar de queixas e queixinhas. Não admira eu ter-me passado algumas vezes!

Bom, pelo menos tinham servido para alguma coisa, preenchiam lindamente aquelas horas inúteis mas pagas a preço de ouro por mim, claro, apesar de me terem obrigado a ir às consultas recusaram-se liminarmente a pagar, mesmo em parte, o especialista que costumavam usar quando surgia algum “trauma” entre os inúmeros funcionários. E aposto que eram frequentes! Fica-me até a dúvida se não receberiam uma percentagem do muito que lhe davam a ganhar...

Mas divago.

E qual foi a brilhante solução do génio que iria resolver os meus problemas de ira, como lhes chamaram? Relaxar, arranjar um passatempo que me agradasse e que me ocupasse umas horas por semana. Só havia uma condição, ser algo totalmente diferente das minhas atividades usuais.

Não foi mesmo nada fácil, garanto-vos, recuso-me a fazer seja o que for que exija esforço físico e as atividades puramente intelectuais estavam excluídas à partida uma vez que para além do meu trabalho de analista de dados passo o meu tempo livre a ler aquilo a que a Rosa, a minha bem-amada esposa, chama calhamaços maçudos.

Estava prestes a mandar o psicólogo à fava quando tive finalmente uma ideia: aprender piano! Aprecio música e em miúdo sempre tive inveja da minha irmã, teve direito a aulas de piano e eu não, apesar de detestar música e não ter o menor jeito ou ouvido para ela. Mas de acordo com os meus pais isso era “coisa de meninas” e, como me repetiram vezes sem conta, eu já andava demasiado ocupado com os estudos, jogos online e tudo isso.

Entendem agora como tudo começou? Era totalmente diferente de qualquer outra das minhas atividades, presentes e passadas e, para ter resultados capazes, exigiria certamente várias horas por semana, entre aulas e prática. Sim, prática, nunca fui de fazer as coisas pela metade e ainda antes de começar já tinha comprado um piano em segunda mão que consegui meter no meu escritório em casa que, por imposição da Rosa, tinha sido insonorizado uns anos antes para eu poder jogar e ouvir música à vontade “sem incomodar os vizinhos”, leia-se, sem a incomodar a ela.

A D. Joana foi-me recomendada como estando muito habituada a ensinar adultos que nunca tinham tocado num piano e fui à primeira aula cheio de entusiasmo e vontade de trabalhar. Mal sabia eu a batucada que me esperava!

Está bem, não precisam de se irritar assim, salto a descrição das unhas e tudo isso, apesar de ser a base do que se passou esta noite. E se querem mesmo que eu repita tudo, como disseram há pouco, então têm de me deixar repetir mesmo tudo o que deu origem ao imbróglio desta noite.

Posso continuar? Muito obrigado, são muito “compreensivos”. Já agora, podem substituir o vosso colega ali atrás, sim, o do revirar dos olhos? Para além de mostrar falta de educação, corta-me um pouco o fim à meada ver as suas caretas e ar de troça. No mínimo, mudem-no de lugar para eu não o conseguir ver no espelho. Sim, assim está melhor.

Pois bem, a D. Joana. Gostei daquela primeira aula e das que se seguiram, ela é realmente uma boa professora e vê-se que está habituada a lidar com adultos e não com criancinhas que têm aulas só por imposição dos pais. Sim, se um adulto decide aprender piano, é lógico ser por vontade própria e isso altera muito toda a relação entre professor e aluno.

Como disse, gostei imenso das aulas, com um pequeno senão. Bom, pequeno inicialmente. É que a D. Joana tinha umas unhas longas, mesmo muito longas. E bicudas, por falta de melhor termo. Quase como as de um vampiro em filmes antigos, a preto e branco. Muito francamente, pareciam mais próprias de uma modelo ou “senhora de lazer” do que de quem toca e ensina piano. E sempre pintadas de um verniz muito vermelho e brilhante.

O problema é que para me ensinar a D. Joana começava por demonstrar o que queria que eu fizesse. Ao fim de pouco tempo consegui abstrair-me do faiscar de todo aquele vermelho quando ela atacava as teclas, mas o ruído... Ah, o ruído surdo daquelas unhas aguçadas a baterem no marfim – ou plástico, hoje em dia quem sabe?

Há um detalhe sobre mim que sinto que devo realçar. Sou muito sensível a certos tipos de ruídos. A minha mulher indigna-se sempre quando o digo, aponta inevitavelmente o alto nível sonoro com que jogo no computador, vejo filmes e ouço música – daí a insonorização do meu escritório. Mas não são os sons todos, são só alguns. Tive, por exemplo, de experimentar vários teclados para o meu computador de trabalho e para o de casa até encontrar um que não me enervasse e foi um pesadelo encontrar um portátil com o “som” certo das teclas. E olhem que ao contrário da D. Joana tenho sempre as unhas muito curtas, o mais rentes possível, evitando assim que aumentem o ruído inevitável de um teclado.

Sim, bem sei que todos acham absurda esta minha esquisitice, mas as pessoas são como são e esta é talvez a minha única obsessão.

Perante o que acabei de dizer, imaginem a minha reação ao batuque, sim, é o termo adequado, daquelas unhas nas teclas de um piano. Tentei tudo para o ignorar, cheguei até a usar tampões para os ouvidos, dos que só atenuam um pouco o ruído, mas nada resultava. Até mesmo quando se passava uma aula sem que a D. Joana tocasse fosse o que fosse, a tensão continuava presente, nem podia gozar o silêncio, bom, o das unhas, claro está, porque estava sempre num sobressalto à espera de uma intervenção dela.

É claro que podia ter deixado o piano ou, no mínimo, arranjado outra pessoa para me ensinar. Mas estava a progredir bastante e se acham que é fácil encontrar quem ensine adultos, estão redondamente enganados.

Depois de muito matutar, encontrei finalmente uma outra opção que resolveria o meu problema sem incomodar ninguém. Muito simplesmente, decidi fazer uma pequena alteração no piano dela. Depois, a D. Joana até podia ter unhas de aço!

Sei que vasculharam o meu saco, encontraram certamente uma caixa com uns pequenos retângulos transparentes muito bem embalados. Pois bem, foram cortados por mim à medida das teclas num material que a empresa onde trabalho anda a desenvolver para a NASA. Absorve totalmente o ruído, bom, por enquanto ainda está nos 72 %, é leve e fácil de aplicar, a ideia é forrar uma zona de uma nave de longo curso, para Marte, por exemplo, ou da estação espacial para dar alguma privacidade aos astronautas, um de cada vez, claro.

Mesmo muito longe de estar pronto, servia perfeitamente para o fim em vista, permitir-me ter aulas de piano. Sei que me perguntaram várias vezes porque não falei francamente com a D. Joana sobre o assunto e porque não lhe propus abertamente a minha solução. Sinceramente, não a quis ofender. Umas unhas daquelas dão imenso trabalho a manter sempre tão perfeitas, pelo menos a avaliar pelas da Rosa que, apesar de manicuras semanais nunca estão assim. Eram pois motivo de orgulho para ela, não me atrevi a fazer-lhes a menor crítica ou algo que pudesse ser visto como tal.

Não, a minha ideia era bem mais discreta e evitaria certamente ofender aquela excelente senhora e ótima professora de piano.

E foi por isso que entrei à socapa em casa da D. Joana esta noite, usando uma janela que tive o cuidado de deixar destrancada durante a minha aula desta tarde. Seria tudo muito rápido, como disse, o material é fácil e rápido de aplicar. Pelos meus cálculos, uns vinte minutos, meia hora no máximo, para entrar, fazer o trabalho e sair.

Como é que eu podia adivinhar que havia um cão em casa? Nunca o tinha visto nem ouvido! Mas ele ouviu-me certamente e deitou mesmo a casa abaixo ainda antes de eu ter dado dois passos na sala do piano. Ainda se ao menos me tivessem apanhado uma vez concluída a alteração, isso evitaria incómodos a outros alunos, estou certo que não devo ser o único a quem o som daquelas garras incomodam.

É claro que depois de toda a confusão desta noite, isso já não será possível. É que o material é experimental e secreto e tirei-o sem autorização...


Luísa Lopes

Imagem de mahbubhasan


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