Não sou capaz de precisar o tempo, talvez estivesse beirando os quatro
anos, quando vi minha mãe amparada pela minha avó, num crepúsculo de um
dia qualquer, entrar pela casa e caminhar a passos frágeis até o quarto
onde dormia com meu pai.
Pela porta entreaberta o olhar espantado de eu menininho nem piscou.
Minha mãe abriu o guarda-roupa e abraçou de uma só vez o que estivesse
em cabides: ternos, paletós, calças de linho e tergal, casacos, camisas
de cambraia, capote de chuva. E enlaçou para si tudo com tanto fervor,
desespero e lágrimas, como se abraçasse com paixão o dono daquela rouparia
que ali permanecia indiferente ao recente acontecimento.
Abraçou com todo o amor que cabe entre braços sinceros, tal como recebia
o marido quando chegava pouco antes do jantar, depois de perambular
pelo Rio de Janeiro fechando negócios de seguro.
Diziam que meu pai mexia com seguros e era um bom vendedor. Tenaz, simpático
e convincente, que de porta em porta de casas distantes trazia para a nossa
um bom viver no que chamam de amoroso lar.
Isso é que me diziam sobre meu pai, que, com tamanha vontade minha de ouvir
repetidamente sobre sua pessoa, gestos, atitudes histórias e cheiro, acreditava
acompanhá-lo em suas andanças. Mentira. Me recusava a crer que numa dessa idas
e vindas pelas esquinas da formigante Avenida Central estivesse eu ao seu lado
quando um táxi desembestado o levantou para o alto, deixando meu pai lá em cima
para todo sempre.
Dizem que minha mãe não derramou uma lágrima no velório, corriam cochichos que
portou-se como uma dama da alta nobreza tijucana, recebendo a todos com a
dignidade alinhada de uma Jackeline Kennedy. Mas perdeu as estribeiras quando
a urna baixou sepultura. Tiveram que conter o esperneio na medida do compreensível,
mas não a borrasca de prantos, soluços e gritos amaldiçoados contra o destino.
E assim a trouxeram em estado lastimável para casa, sem um sapato.
Minha mãe era uma professorinha formosa e não merecia tão bruta interrupção na
normalidade da vida. Muito menos eu, filho único de quase quatro anos, não merecia
não me permitir mais andar agarrado nas pernas do meu pai, pisando firme sobre
seus sapatos reluzentes por tudo quanto é canto da casa.
Disso me lembro com importante nitidez: o calor de suas mãos me assegurando
cumplicidade e seu vozeirão aveludando o hino da Cavalaria, “tu és na guerra
a nossa estrela guia.” Foi desse jeito que venci a Batalha de Waterloo nas fileiras
napoleônicas e resisti à blitzkrieg nazista contra a Polônia, evitando a Segunda
Guerra Mundial. Do alto dos sapatos do meu pai eu era o herói.
Mas nada é tão vivo, mais que seus bigodes bem aparados, mais que seu perfume
discreto de Lancaster flutuando pela casa, mais que seus abraços na minha mãe
- que sempre terminavam no quarto do casal - nada é tão existente quanto seu
guarda roupa, dias depois, esvaziado de ternos, camisas, calças, calçados,
desengavetado de meias, lenços, cuecas samba canção de presilhas que faziam tlec,
abotoaduras douradas ou prateadas conforme a cor da gravata.
Permaneceu monumental o armário de jacarandá, entrando pela minha adolescência
de herói sem cavalo como a real lembrança do breve pai.
O resto é memória que aflora com a certeza fantasiosa de que fora vivenciada,
de tanto minha mãe, meus avós e a parentada me contarem sobre meu pai. Ai de
quem duvidar que não vivi, tal a clareza e a preciosidade dos detalhes.
Numa certa tarde, voltando de bonde do Ginasial, minha mãe me esperava no portão
e me chamou para uma conversa na beira do sofá da sala. Ela segurou minha mão e
senti seus dedos de unhas bem feitas trêmulos, frios, suarentos. Ela suspirou,
fechou os olhos e confessou que estava apaixonada, como se de mim carecesse
alguma permissão. Falou de um médico distinto, solteirão, poliglota, culto e
com sérias pretensões em se casar com ela.
Foi um choque. Não me imaginava cavalgando por outros pés. Como os sentimentos
legítimos e imediatos às vezes batem de frente com a razão, compreendi que a
formosa professorinha, depois de sobras de luto e choramingo por quase dez anos,
merecia recompor a vida.
Noites seguintes, sonhei com um irmãozinho ou uma irmãzinha, já que a companhia de
um cachorro sempre me foi negada, me levando a brincar, prosear e brigar com amigos
imaginários, coisa que fazia minha avó dizer que eu falava com as paredes.
A confissão da paixão da minha mãe e o consequente desembarque do distinto médico,
se durante o dia trazia de novo uma rara mulher ensolarando a casa, à noite me abria
um céu de tempestades e medos da escuridão. Acordava suado de madrugada a ponto de
repetir um ritual, um mecanismo de defesa contra tormentos noturnos: entrar de mansinho
no quarto deles, ver os dois de conchinha, nas profundezas de um sono restaurador,
talvez depois uma suposta sessão de saliência devida e merecida - duro de imaginar
para um filho único, ainda mais sem a concretude de um pai biológico.
Mas não me cabiam raiva, mágoa, sentimentos corrosivos, havia uma tarefa soberana,
rotineira e clandestina a cumprir: abrir o guarda-roupa em silêncio, respirar o seu
vazio, me embriagar do discreto perfume de Lancaster que jamais deixou o lugar.
A conferida sorrateira toda noite no guarda-roupa, tal como uma celebração da pureza
da vida tenra, sossegava minhas aflições.
O armário de jacarandá oco com seus gavetões vazios entulhados de memórias estava
preservado e só pertencia a mim e às lembranças do menino herói. Um templo mágico
e eterno, sem sinais de invasões estrangeiras.
Sábia professorinha formosa.
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