Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

terça-feira, 20 de abril de 2021

O QUE GUARDA UM GUARDA-ROUPA



Não sou capaz de precisar o tempo, talvez estivesse beirando os quatro 

anos, quando vi minha mãe amparada pela minha avó, num crepúsculo de um 

dia qualquer, entrar pela casa e caminhar a passos frágeis até o quarto 

onde dormia com meu pai. 


Pela porta entreaberta o olhar espantado de eu menininho nem piscou. 

Minha mãe abriu o guarda-roupa e abraçou de uma só vez o que estivesse 

em cabides: ternos, paletós, calças de linho e tergal, casacos, camisas 

de cambraia, capote de chuva. E enlaçou para si tudo com tanto fervor, 

desespero e lágrimas, como se abraçasse com paixão o dono daquela rouparia 

que ali permanecia indiferente ao recente acontecimento. 

Abraçou com todo o amor que cabe entre braços sinceros, tal como recebia 

o marido quando chegava pouco antes do jantar, depois de perambular 

pelo Rio de Janeiro fechando negócios de seguro. 


Diziam que meu pai mexia com seguros e era um bom vendedor. Tenaz, simpático 

e convincente, que de porta em porta de casas distantes trazia para a nossa 

um bom viver no que chamam de amoroso lar. 


Isso é que me diziam sobre meu pai, que, com tamanha vontade minha de ouvir 

repetidamente sobre sua pessoa, gestos, atitudes histórias e cheiro, acreditava 

acompanhá-lo em suas andanças. Mentira. Me recusava a crer que numa dessa idas 

e vindas pelas esquinas da formigante Avenida Central estivesse eu ao seu lado 

quando um táxi desembestado o levantou para o alto, deixando meu pai lá em cima 

para todo sempre. 


Dizem que minha mãe não derramou uma lágrima no velório, corriam cochichos que 

portou-se como uma dama da alta nobreza tijucana, recebendo a todos com a 

dignidade alinhada de uma Jackeline Kennedy. Mas perdeu as estribeiras quando 

a urna baixou sepultura. Tiveram que conter o esperneio na medida do compreensível, 

mas não a borrasca de prantos, soluços e gritos amaldiçoados contra o destino. 

E assim a trouxeram em estado lastimável para casa, sem um sapato. 


Minha mãe era uma professorinha formosa e não merecia tão bruta interrupção na 

normalidade da vida. Muito menos eu, filho único de quase quatro anos, não merecia 

não me permitir mais andar agarrado nas pernas do meu pai, pisando firme sobre 

seus sapatos reluzentes por tudo quanto é canto da casa. 


Disso me lembro com importante nitidez: o calor de suas mãos me assegurando 

cumplicidade e seu vozeirão aveludando o hino da Cavalaria, “tu és na guerra 

a nossa estrela guia.” Foi desse jeito que venci a Batalha de Waterloo nas fileiras 

napoleônicas e resisti à blitzkrieg nazista contra a Polônia, evitando a Segunda 

Guerra Mundial.  Do alto dos sapatos do meu pai eu era o herói. 


Mas nada é tão vivo, mais que seus bigodes bem aparados, mais que seu perfume 

discreto de Lancaster flutuando pela casa, mais que seus abraços na minha mãe 

- que sempre terminavam no quarto do casal - nada é tão existente quanto seu 

guarda roupa, dias depois, esvaziado de ternos, camisas, calças, calçados, 

desengavetado de meias, lenços, cuecas samba canção de presilhas que faziam tlec, 

abotoaduras douradas ou prateadas conforme a cor da gravata.  

Permaneceu monumental o armário de jacarandá, entrando pela minha adolescência 

de herói sem cavalo como a real lembrança do breve pai. 


O resto é memória que aflora com a certeza fantasiosa de que fora vivenciada, 

de tanto minha mãe, meus avós e a parentada me contarem sobre meu pai. Ai de 

quem duvidar que não vivi, tal a clareza e a preciosidade dos detalhes. 


Numa certa tarde, voltando de bonde do Ginasial, minha mãe me esperava no portão 

e me chamou para uma conversa na beira do sofá da sala. Ela segurou minha mão e 

senti seus dedos de unhas bem feitas trêmulos, frios, suarentos. Ela suspirou, 

fechou os olhos e confessou que estava apaixonada, como se de mim carecesse 

alguma permissão. Falou de um médico distinto, solteirão, poliglota, culto e 

com sérias pretensões em se casar com ela. 


Foi um choque. Não me imaginava cavalgando por outros pés. Como os sentimentos 

legítimos e imediatos às vezes batem de frente com a razão, compreendi que a 

formosa professorinha, depois de sobras de luto e choramingo por quase dez anos, 

merecia recompor a vida. 


Noites seguintes, sonhei com um irmãozinho ou uma irmãzinha, já que a companhia de 

um cachorro sempre me foi negada, me levando a brincar, prosear e brigar com amigos 

imaginários, coisa que fazia minha avó dizer que eu falava com as paredes. 


A confissão da paixão da minha mãe e o consequente desembarque do distinto médico, 

se durante o dia trazia de novo uma rara mulher ensolarando a casa, à noite me abria 

um céu de tempestades e medos da escuridão. Acordava suado de madrugada a ponto de 

repetir um ritual, um mecanismo de defesa contra tormentos noturnos: entrar de mansinho 

no quarto deles, ver os dois de conchinha, nas profundezas de um sono restaurador, 

talvez depois uma suposta sessão de saliência devida e merecida -  duro de imaginar 

para um filho único, ainda mais sem a concretude de um pai biológico. 


Mas não me cabiam raiva, mágoa, sentimentos corrosivos, havia uma tarefa soberana, 

rotineira e clandestina a cumprir: abrir o guarda-roupa em silêncio, respirar o seu 

vazio, me embriagar do discreto perfume de Lancaster que jamais deixou o lugar. 

A conferida sorrateira toda noite no guarda-roupa, tal como uma celebração da pureza 

da vida tenra, sossegava minhas aflições. 


O armário de jacarandá oco com seus gavetões vazios entulhados de memórias estava 

preservado e só pertencia a mim e às lembranças do menino herói. Um templo mágico 

e eterno, sem sinais de invasões estrangeiras. 

Sábia professorinha formosa. 



Share


José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


0 comentários:

Postar um comentário