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domingo, 8 de novembro de 2020

Vira o disco...

 

Quem o visse agora todo encolhido numa cela de uma miserável cadeia nunca reconheceria o garboso Henrique Gonçalves, empreendedor de sucesso, anfitrião das melhores festas que a cidade alguma vez vira e o querido do corpo feminino local, apesar de estar noivo da maior beldade e herdeira do país.

Os que sabiam da sua prisão, incluindo o advogado bem pago que usava para os seus negócios, achavam que era mais uma questão política ou que se esquecera de “untar” as mãos certas, sendo uma mera questão de tempo – e de dinheiro – até tudo voltar à normalidade. O advogado garantira-lhe que estava tudo encaminhado para daí a uns dois dias no máximo voltar ao seu sumptuoso apartamento, possivelmente até com um pedido de desculpas por aquele lamentável “mal-entendido”.

Mas ele sabia que não seria bem assim. É que advogado, noiva, amigos e conhecidos desconheciam um facto fundamental: Henrique Gonçalves não existia!

Não, não era uma dúvida existencial, a pessoa naquela cela era de carne e osso e estava bem viva. Mas não era Henrique Gonçalves, personagem inventado num outro país juntamente com toda a documentação que lhe dera origem.

Passo a explicar. A pessoa que todos conheciam como Henrique Gonçalves nascera e vivera muitos anos como António Gomes numa outra cidade, num outro país, até num outro continente.

De uma família modesta mas dotado de uma inteligência aguçada para o negócio, cedo pôs a uso as táticas do pai, vendedor de chaços, perdão, de carros usados, mas com mais estilo e muito mais subtileza. As “vítimas” do pai suspeitavam desde o início que havia fortes hipóteses de serem enganadas, as dele nunca o chegavam a saber e quando as coisas corriam mal culpavam tudo e todos exceto ele, agradecendo-lhe até frequentemente os esforços que fizera para inverter a situação.

Aos 25 anos era já milionário, pelo menos no papel, e vivia num luxuoso e caríssimo apartamento na melhor zona da cidade, frequentando a alta sociedade financeira – porque para a outra não passava de um arrivista.

Na inauguração de uma ala de um museu para que fora convidado graças a um chorudo donativo viu pela primeira vez a jovem mais apetecida da verdadeira elite, a tal que lhe virava as costas, tendo decidido de imediato a sua conquista. E como tudo a que se dedicava, em breve teve êxito, graças sobretudo a ter descoberto que, apesar dos ares que se dava, a família da jovem tinha mais estatuto que dinheiro.

Não se pode dizer que o casamento fosse feliz nem era esse o seu propósito. Mas abrira-lhe as portas a todo um setor da sociedade que sempre lhe estivera vedado e, graças ao seu “faro”, a novos alvos para as suas negociatas.

Os anos foram passando, assistindo ao nascimento dos dois filhos da praxe – um rapaz e uma rapariga – educados nos melhores colégios e que mal conhecia, exceto quando era altura de pagar um capricho ou tentar apagar um pecadilho. A vida profissional decorria o melhor possível, num verdadeiro malabarismo de novos clientes que ajudassem a acalmar os antigos e a fazer face às suas cada vez maiores despesas.

Sabia que isto não poderia durar para sempre, bastaria uma pequena crise nos mercados para fazerem desmoronar os vários castelos de cartas que ia mantendo de pé, mas isso estaria no futuro e António vivia exclusivamente para o presente.

Mas um pequeno ataque cardíaco que o enviara por uns dias para uma clínica caríssima onde lhe foi vedada qualquer tipo de atividade forçou-o a meditar na vida que levava e que julgava ser a que queria. Confrontado pela primeira vez com a sua mortalidade, António meditou muito a sério na futilidade da sua vida, no casamento sem amor, na mulher e filhos que viam nele apenas um modo de sustento de luxos e caprichos, enfim, na finalidade do que fazia. O facto de os mercados andarem tremidos e de saber que lhe seria cada vez mais difícil manter no ar as muitas bolas que manuseava também ajudou.

Resumindo, António decidiu que era altura de recomeçar do zero. Nos dias que se seguiram à estadia na clínica pôs em marcha todo o processo que lhe daria uma nova identidade, permitindo-lhe iniciar uma nova vida longe dali, quem sabe, uma vida mais autêntica e feliz.

Recebeu a documentação da sua nova identidade e saiu do país mesmo a tempo, uma queda na Bolsa pôs a nu as muitas falcatruas que cometia há anos e o facto de os bens da sua empresa não chegarem para cobrir nem um décimo do que devia aos investidores. O resto dissipara-se em despesas loucas e no aparato da vida que a família levava. Foi emitido um mandato de captura internacional, a mulher voltou para a família e os filhos passaram de repente de meninos “bem” que todos adulavam a filhos de um trafulha.

O mandato não deu resultados, António Gomes parecia ter-se evaporado. Não admira, vivia agora como Henrique Gonçalves na modesta capital de um pequeno país do outro lado do mundo, um lugar nada provável para quem sempre vivera de manipular fundos e mercados.

Inicialmente, foi realmente um recomeço. António, perdão, Henrique arranjou um modesto emprego de diretor financeiro de uma pequena empresa – bom, era mais um faz-tudo nas áreas comerciais, financeiras e de marketing da empresa – e investiu uma pequena parte dos fundos que conseguira levar consigo num pequeno apartamento numa zona razoável, mas não de luxo da cidade.

Frequentava cafés e restaurantes modestos, vestia-se em lojas medianas, enfim, vivia como nunca tinha vivido. Fez até alguns amigos com quem ia ao futebol e outros desportos – nas bancadas, não nos camarotes da presidência ou outros locais destinados a gente importante. Começou até um pequeno namoro com a irmã de um amigo, uma rapariga modesta e trabalhadora, razoavelmente bonita, que nunca lhe chamaria a atenção na sua antiga vida.

Podia-se até dizer que era feliz, apesar de não ter exatamente um termo de comparação: passara toda a vida a almejar algo que ainda não possuía e que desprezava assim que o alcançava.

A mudança começou de um modo quase inócuo. Um amigo anunciou um dia no café que ia passar uns dias a uma estância de luxo graças a um pequeno investimento que fizera. Curioso, foi ver de que se tratava e uma coisa levou a outra e em menos de nada estava ocupadíssimo a comprar e a vender ações e participações de todo o tipo, ganhando e perdendo quantias cada vez maiores e descuidando cada vez mais o emprego.

Ao fim de algum tempo decidiu que essa vida dupla não podia continuar e despediu-se com o pretexto de que iria trabalhar por conta própria em investimentos. E assim fez.

Aos poucos, hábitos antigos e que julgara esquecidos voltaram à tona. O modesto apartamento em que vivia deixou de o satisfazer, os amigos davam-lhe tédio, a namorada era demasiado corriqueira, enfim, tudo na nova vida deixou de lhe agradar.

Mas mesmo num país com um custo de vida bem menor os seus rendimentos honestos não chegavam para o pôr no topo. Rapidamente aprendeu a movimentar-se no mundo de subornos, trocas e pequenas desonestidades da sua nova pátria. Com o muito que sabia, em breve se tornou um tubarão rei num mundo de pequenos tubarões, com uma vida de luxo de fazer inveja a qualquer um.

Talvez fosse esse o problema. Alguém não devia ter gostado de ser suplantado por um estrangeiro, daí a sua prisão por algo que fizera milhares de vezes com total impunidade. E sabia que assim que metessem as suas impressões digitais na rede o velho mandato em nome de António Gomes, que ainda não prescrevera, viria à tona e seria o seu fim.

Mas talvez não estivesse tudo perdido. Se conseguisse que o soltassem, mediante uma avultada fiança, claro, antes do aparecimento do mandato, poderia dar a volta à situação. É que quando comprara a identidade de Henrique Gonçalves, num ataque de paranoia comprara uma outra a um outro intermediário. Assim teria sempre uma identidade de reserva caso um dos fornecedores fosse apanhado antes de ele sair do país.

Levara consigo toda a documentação dessa segunda identidade, por isso, se conseguisse sair daquela cela poderia ir à socapa até à cidade mais próxima, embarcar com novo nome e recomeçar num outro país.

Sim, daria instruções ao advogado para que pagasse o que fosse preciso para ele sair dali. Já antevia até, com prazer, a nova vida que teria, modesta, discreta, sem voos altos que pudessem atrair as atenções para um tal Ricardo Costa!

Luísa Lopes

Imagem de Reimund Bertrams por Pixabay

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