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segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Mirena, hoje está tão seco - conto de Betzaida Mata




          Nunca vi sorveteria com rádio. E justo nessa estação? Coisa mais saudosista. Logo a música do A-ha, por quê? Eu só queria tomar um sorvete, adoçar a boca, esfriar a cabeça. Com essa música não tem jeito. Não vim aqui para sofrer com o passado. Crying in the rain num tempo seco desse parece até piada. A cidade fica tão feia quando não chove. Tudo cheirando a coisa velha. É impressão minha ou antigamente chovia mais? Tenho tanta lembrança de temporal de quando eu era moça. Moça? Sei lá. Treze anos. Adorava subir a rua da mercearia, até lá em cima, e ficar olhando a paisagem depois da chuva. “Cuidado, menina, lá é muito ermo. Cheio de lote vago”. Minha mãe morria de medo da parte alta do bairro. Mas eu gostava. Dava uma sensação de limpeza, aquela paisagem toda úmida. Mas agora... Parece que está tudo empoeirado. De que adianta conseguir uma brecha para sair de casa se não posso respirar ar puro? 

          Ser mãe de três filhos é viver numa prisão. Três? Não pensa, Mirena, não pensa. Três e pronto. Você não saiu de casa para isso. O tempo já passou. E não tem nada de prisão. “Filho é benção”, Leila me proibiu reclamar das crianças. Eu me calo. Brigar com Leila pra quê? Não fosse ela, estaria agora em casa naquele suplício. “É só por uma hora. Preciso dar uma volta e espairecer”. “Pode ir, eu olho os meninos pra você.” Então, se ela me diz que filho é benção eu só posso concordar. Leila conhece a história. Não fala nada, mas me olha com aquela cara de “eu não esqueci”.  Eu era tão nova, meu Deus. Nem pensei no que estava fazendo. E no fim, deu tudo certo, não deu? Ainda posso subir a rua da mercearia. A vista não vai estar bonita como naqueles tempos, mas ainda posso. 

          Queria agora estar em um filme. Aí, nesse instante, teria um corte e a legenda em letras garrafais: “VINTE E SETE ANOS ATRÁS”. Então, iria aparecer a rede de vôlei estendida, atravessando a rua, os mastros presos a latinhas de Nescau cheias de cimento e o céu coberto de nuvens anunciando um temporal. “Anda! Entra pra dentro que vai chover!”, as mães começavam a gritar pelas janelas das casas.  A gente se fazia de surdo e continuava a partida, os pingos grossos caindo, a lama dos terrenos baldios descendo para a rua. Aos treze anos eu era linda. Diziam que eu me parecia com a menina da propaganda do chocolate Laka. Acho que parecia mesmo, exceto pelos meus pés ligeiramente tortos e as coxas grossas demais para quem ainda era uma menina. 

          Ninguém mais se lembra da propaganda. Do you like me?, a jovenzinha em frente ao espelho fazendo caras e bocas ao som do A-ha. I’ll do my crying in the rain. Corte para a cena do banco de praça. Um adolescente de cabelos lisos e rosto de anjo devorava um chocolate à espera da menina. Eu demorei muito? Todo mundo dizia que ela era linda e que eu me parecia com ela. Eu trouxe um Laka pra você, o adolescente desconcertado. Ela lhe perguntava cadê e ele lhe dava um beijo. Ninguém mais se lembra. Mas a Leila não se esquece. “Naquela época você já tinha corpo, Mirena”.  Ela que era magrela demais. Quatorze anos e ainda nem tinha menstruado. Acho que sentia inveja de mim. Os homens mexiam comigo. “Que linda!”, “Ô menina do chocolate Laka!”. Eu gostava. Alguns exageravam: “Ô gostosa”. E eu não sabia ainda se aquilo era bom ou ruim. Aos doze, já beijava na boca dos rapazes. Por aqui, isso era normal desde aquela época. Só não podia deixar passar a mão. Nem mesmo por cima da roupa se podia deixar passar a mão na bunda ou nos peitos. Hoje em dia as coisas são mais liberadas. 

          E se eu voltar à sorveteria? A música já passou, adoço a boca e esfrio a cabeça. Será que ainda dá tempo? A essa hora, deve estar fechada. Vai começar a escurecer e é melhor voltar para casa. Perigoso andar sozinha domingo à noite, fica tudo tão ermo! Naquele dia estava exatamente assim, as ruas desertas, o sol indo embora. Olha lá, foi só pensar que atraí coisa ruim! Que homem é aquele, meu Deus? Atravesso a rua ou sigo? Se atravesso, ele pode se sentir ofendido. Se eu seguir, é mais fácil dele me atacar. Calma, você não é mais uma menina. Homem nenhum vai querer atacar uma senhora de quarenta anos. Vê? É só um jovem. É só... Meu Deus, já virou um homem!

          – Tudo bem, Mirena?

          “Mirena”, é assim que ele me chama. E daí, é este o meu nome, não é? Agora virou homem de verdade. Vinte e sete anos. Vinte e sete mais treze é igual a quarenta, a minha idade.  “Agora sim, ele já tem corpo”, diria a Leila. E os mesmos pés tortos de quando era ainda um menino magrelo. É lindo. Eu também era linda.   

          – Oi. Você está sumido.

          – Estou morando em Ouro Preto. Mas você já sabia disso.

          – Sim, é verdade. Dona Francisca me contou quando você passou no vestibular. Por falar nisso, como ela está?

          – Com câncer. Não te avisaram?

          – Câncer? Não sabia. 

          – Você devia ir visitá-la. 

          Devia mesmo. O mínimo que devo a essa mulher é gratidão. Carregou minha carga sobre os ombros. E que carga!  

          – E a faculdade?

          – Está bem. No final do ano, eu me formo. 

          – Já? Então deu tudo certo, não deu?

          – Deu sim, Mirena. 

          O menino de dona Francisca, era assim que o chamavam. Você, um bebê chorão que passava pela rua da minha casa a caminho da creche e me fazia sofrer de um jeito que eu não queria. Tudo naquele bairro – as ruas, a vizinhança, a mercearia e os terrenos baldios – pareciam me censurar como se a mim não fosse lícito o sofrimento. “Não pense mais nisso, Mirena, segue sua vida”, Leila uma vez me disse quando ainda conversávamos sobre este assunto. 

          Ninguém o suportava. Um demônio! Furava pneus de carros, danificava os produtos da mercearia, inventava mentiras que provocavam brigas entre a vizinhança inteira. Era esperto. Algumas vezes, chegava a ser cruel. Feito o dia em que convenceu Lili, a filha da Mariana, a beber querosene. Disse que era bom para emagrecer. E ela gordinha, coitada, bebeu logo o vidro inteiro. Leila, que na época já tinha carro, correu com a menina para o hospital e fizeram uma lavagem gástrica. “Esse jeito do Marcos é por causa da revolta que ele tem dentro dele”, voltando do hospital, ela se punha a comentar com as vizinhas, cheia de compaixão, enquanto desferia contra mim o olhar envenenado. Eu só tinha treze anos, Marcos, o que eu podia fazer?

          – Que bom, você já está encaminhado. 

          – Dei muito trabalho quando era menino, né?

          Não para mim. Deu trabalho para dona Francisca, que teve a compaixão de o pegar para criar. Para suas professoras que se descabelavam quando quebrava portas das salas de aula e esvaziava extintores de incêndio da escola. Depois, deu trabalho para a polícia. Para mim, nunca. 

          – Normal, Marcos, era coisa da idade. 

          – Se eu pudesse, pediria desculpas pra todo mundo. Principalmente pra você, Mirena.

          – Você pedir desculpas pra mim? Não deveria ser o contrário?

          – Você era nova. Treze anos é até covardia! Minha mãe vivia falando isso comigo. Pra eu não guardar raiva que você era muito menina. 

          – Dona Francisca tem o coração bom. 

          Desculpa? Só se for por causa daquela vez. Quantos anos você tinha naquela época? Uns doze? Eu ainda era solteira e trabalhava na mercearia. Você entrava escondido, abria embalagens de iogurte, bebia pela metade e deixava o resto ali, fazia questão de deixar as embalagens pela metade para que seu Raimundo pudesse ter certeza de que você tinha passado por lá e aprontado mais uma das suas. Eu o protegia. Claro! Já havia falhado miseravelmente no princípio de tudo (eu era uma menina, Marcos, você precisa entender). Seu Raimundo conhecia a história, mas nunca comentou comigo. “Esse garoto é a própria encarnação do demônio.” Eu engolia seco e abaixava a cabeça. Não gostava que falassem assim de você perto de mim. Um dia, ele me ameaçou: “A próxima vez que eu souber que esse diabo entrou aqui, você está na rua!” Poucas horas depois e lá estava você. “O que você quer, Marcos?” “Vim comprar leite para minha mãe”. “Vai embora. Seu Raimundo não quer você aqui.” Você me ignorou e continuou seguindo. “Some daqui que eu estou mandando, moleque desgraçado!” Por que fiquei tão furiosa? Você estancou, caminhou lentamente até o balcão e começou a despejar as palavras, feito um saco de espinhos. “Está pensando que é quem para mandar em mim? Sua ridícula! Quem manda em mim é minha mãe. A minha mãe, entendeu? Dona Francisca. Você é só uma imbecil que deveria estar morta. Eu te odeio mais que tudo”. Falava pausadamente, sem elevar o tom de voz, os olhos faiscando a colocar para fora todo o ódio do bebê recém-nascido jogado fora num terreno baldio.  Depois, se enfiou pelas prateleiras, abriu um vidro de água sanitária e despejou tudo no chão, lentamente, encarando-me como quem desafia. Então, correu para o fundo da venda e começou a quebrar, um por um, os ovos expostos em caixas. Quatro dúzias ao todo, que foram descontadas do meu salário. Além da água sanitária, dos três litros de leite e de cinco tomates espatifados pelo chão. “Eu quero que você morra!”. Seu Raimundo apareceu na hora e lhe deu uma surra. Que surra! Dona Francisca foi até lá, furiosa, disse que ia chamar a polícia porque um adulto não podia bater assim numa criança. “Pois pode chamar, dona Francisca. Mas não reclame depois se levarem esse delinquente para a Febem!”. Ela recuou. “Ele é revoltado, seu Raimundo. Por causa da história dele”. O velho me olhou de lado. “Não tenho nada com isso. Deixa pra lá. Esse prejuízo quem vai pagar é a Mirena.” Naturalmente, aquela conta cabia a mim e a mais ninguém. “Mas a senhora, dona Francisca, trate de fazer alguma coisa, não quero ver seu filho passar nem na porta da mercearia.” Ela deu um jeito e você nunca mais apareceu ali por perto. Depois, eu tive notícias, continuou aprontando na rua, nos bares, até que criou juízo e foi estudar. Eu me casei e tive mais três filhos. Nesse meio tempo, nós nos vimos poucas vezes, uma ou outra missa, um ou outro velório. E a vida seguiu. 

          – E seus filhos, como estão?

          “São três, não são?” É o que os vizinhos até hoje me perguntam, com um misto de curiosidade e malícia. Não, não são. 

          – Bem. Já estão crescidinhos. 

          – Eu vi. Estive agora lá na casa da Leila. 

          Se acabou de vê-los, por que me perguntou? 

          – É impressão minha ou a sua filha mais nova é canhota?

          Ele percebeu. 

          – É canhota, Marcos, igual a mim.

          – Igual a mim também. 

          Canhota e das pernas tortas.

          – Foi bom ter te encontrado. Preciso ir, os meninos devem estar dando muito trabalho para a Leila. 

          – Que nada. Estavam tranquilos, desenhando com lápis de cor. Vamos conversar mais um pouco. 

          Conversar? Mas o quê?

          – Preciso ir. Além do mais, daqui a pouco vai chover e estou sem sombrinha. 

          – Chover? Mirena, hoje está tão seco! Não quer tomar um sorvete comigo? 

          – Será que ainda dá tempo? 






 


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Rafael F. Carvalho
Autor do livro A Estante Deslocada, é paulistano, nascido em 27 de Fevereiro de 1978. Foi publicado em antologias de novos escritores e em jornais universitários, e é formado em Letras pela Universidade de São Paulo.


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