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domingo, 9 de agosto de 2020

Feliz Aniversário, querido!



Feliz aniversário, querido!
Espero e temo este dia há semanas e ei-lo que chegou, finalmente. É o nosso dia, o nosso vigésimo aniversário de casados, o vigésimo segundo da nossa vida em comum e o vigésimo terceiro da data em que nos conhecemos.
Na solidão profunda destes últimos meses tenho pensado muito em nós, no que fomos e no futuro que poderíamos ter tido. Dei por mim a recordar detalhes que pensava esquecidos, a primeira vez que te vi, magro como um espeto e com um ar perdido no meio de um grupo turbulento, o primeiro presente que me deste, totalmente desadequado mas bem típico do teu alheamento às convenções, as trocas de olhares cúmplices quando ouvíamos ou víamos algo a que reagíamos do mesmo modo, as pequenas coisas do dia-a-dia em que nem reparamos na altura mas que vão pesando, como teres sempre café pronto às horas em que gosto dele, enfim, duas décadas lado a lado numa quase simbiose.
Nunca me considerei romântica, em miúda não sonhava com o Príncipe Encantado nem com viver uma grande paixão, achava a leitura de romances uma autêntica perda de tempo e francamente, fazia-me imensa confusão assistir aos dramas permanentes em que as minhas colegas e amigas pareciam mergulhar com prazer. Tive namorados antes de ti, claro, mas nada que me fizesse pensar num futuro a dois.
Mesmo contigo, não foi exatamente amor à primeira vista. Sim, reparei em ti naquela festa universitária em que nos conhecemos, mas mais por pareceres totalmente deslocado naquele ambiente e eu própria não me sentir exatamente muito à vontade, aquele tipo de reuniões com muita gente, muito barulho e muito álcool nunca foi bem o meu género.
Vimo-nos depois bastantes vezes, sempre em grupo, mas acabávamos sempre a conversar só os dois, talvez por os restantes estarem mais interessados em namoriscar uns com os outros ou com elementos que iam agregando ao grupo. E descobrimos que tínhamos muitos gostos e interesses em comum — e muitas coisas em que discordávamos totalmente, mas que nos davam um enorme prazer em discuti-las.
Até que um dia... não, não foi o célebre “raio de amor” a “seta de Cupido”, mas algo fez clique em mim e descobri que ansiava por ver-te, por passar mais tempo a sós contigo. E das saídas em grupo passámos a saídas a dois, apenas como amigos, inicialmente, depois, como todos previam, como namorados. E exatamente um ano depois daquela primeira festa decidimos viver juntos, casando o mesmo dia dois anos depois.
Nunca me contaste como tinha sido para ti, quando te despertei a atenção ou até se a nossa relação fora simplesmente fruto de passarmos tanto tempo juntos. Mas penso que foi logo de início, durante muito tempo pedias sempre para mim um “Poupa Cabeças”, uma mistela horrível muito na moda entre a população universitária que não queria beber muito (uma minoria, claro) e que eu odiava mas que fora a minha opção naquela primeira festa.
Outros pequenos detalhes durante a nossa vida em comum levam-me a acreditar que me amaste ainda antes de eu saber a tua importância na minha vida. Como alguns dos presentes que me davas e que tanto confundiam a minha família e amigos, mais habituados a coisas mais convencionais como flores ou joias. Sim, receber um modelo em lata de um elétrico no primeiro aniversário de casamento pode parecer ridículo para quem não saiba que foi num que decidimos namorar e que eu te tinha contado umas semanas antes que em miúda adorava os brinquedos de lata de um primo e que tinha imensa pena de nunca ter tido nenhum.
Vista de fora, a nossa parecia uma relação fria, distante, a ponto de familiares e amigos pensarem que não duraria, que iríamos certamente divorciar-nos. É certo que raras vezes mostrávamos afeto em público, sou reservada por natureza e isso também não estava no teu feitio. Esta carta é até o mais próximo que alguma vez estivemos de falarmos dos nossos sentimentos. Mas nunca senti necessidade de te ouvir declarar o teu amor por mim e penso que o mesmo se dava contigo, somos ambos pessoas que preferimos os atos às palavras. E por atos não me refiro a andar sempre aos abraços e beijinhos, como alguns casais que conhecemos e que afinal pouco duraram, mas sim àquelas pequenas coisas que mostram que entendemos realmente o outro e que a sua felicidade nos importa. Bastávamo-nos um ao outro e ainda bem uma vez que nunca conseguimos ter filhos, nunca lhes sentimos exatamente a falta, foi sempre um caso de se vierem serão bem-vindos, mas se não acontecer, tudo bem, não há drama.
Mas senti que estava na altura de fazer algo diferente, era literalmente um caso de agora ou nunca, escrevi-a pois como uma espécie de marco, de fronteira entre o que tem sido e o dia de amanhã, um ato simbólico, a tal “closure” tão querida dos americanos. Porque amanhã...
Sei que todos me consideram doida por te ter mantido assim durante tantas meses. Perdi a conta às conversas bem-intencionadas de familiares, amigos, enfermeiros, médicos, até o padre que visita diariamente esta instituição, todas no sentido de ser altura de me despedir, de seguir em frente com a minha vida em vez de passar aqui os dias a ler-te, a contar-te coisas do meu dia-a-dia (na maioria inventadas, não tenho propriamente vida fora daqui), a pôr a música de que gostas, enfim, a tentar ocupar o teu tempo e o meu com coisas que sempre te interessaram.
Não o fiz por ter esperança que acordes, que voltes para mim, que haja um milagre, como dizem por aí, mas por precisar deste tempo para me habituar à ideia de que te perdi, se é que isso é possível. E, como sabes, sempre gostei de números certinhos e dizer “quase 20” não tem o mesmo impacto de um “20” puro e seco.
Ficará sob a tua almofada na última noite que passas fisicamente entre nós. Sim, fisicamente, porque espiritualmente já me deixaste há muito, partiste no dia do teu acidente...


Luísa Lopes, 9 de agosto de 2020

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