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domingo, 16 de agosto de 2020

Efeito dominó





Sentado na calçada, em posição de flor de lótus, ele é um vulto. E, como todo vulto, é um quase nada. Pouco se pode afirmar sobre ele. Que é homem. Que não diz palavra. Que incomoda a passagem das pessoas, àquela hora da manhã, pela avenida apinhada. Das gentes que caminham entre a casa e os escritórios, entre a casa e as lojas, entre a casa e outras casas. Das gentes que saltam dos metrôs, dos carros, dos ônibus. Algumas, formigas obreiras. Perfiladas e sérias. Outras, apenas tentativas. Integram as hordas desorientadas de gado urbano que seguem em procissão irregular. Passos mais lentos, é possível distinguir os que transitam ainda em busca. Olhos em ângulo agudo; ombros esvaziados de ânimo; peles ressecadas; mãos nervosas que se abrem e fecham, espasmódicas. Nas bolsas, nas pastas transparentes embaixo do braço, currículos cada vez mais esquálidos. Ou até que não. Muitos, recheados de talento e mérito. E, ainda assim, pedaços de papel A4 buscando leitura e aceitação. 
O vulto. Uma quinzena que está ali sentado. Ou pouco menos que isso. Como uma imagem de vapor, amorfa e disforme. É mendigo, apostam alguns. Mas não há mão estendida. Nem pedidos são feitos. Nem há latinha para recolher moedas e notas. É músico ambulante, outros palpitam. Mas não há instrumento. Ou melodia. Ou canto. De certeza, a observação de que está mais magro. E isso é mais do que se poderia dizer dele há uma semana. É negro. E perceber a cor da sua pele é um detalhe de atenção que pode ser constatação ou preconceito.
Hoje, bem de perto, posso ver umas lágrimas teimosas que se livram dos seus olhos,  manchando o rosto empoeirado. E eu me pergunto em que momento aconteceu o encurtamento da distância entre nós. Em que momento eu quis saber o seu nome. Em que momento eu lhe perguntei sobre a sua história. 
Ele é José. O vulto. E Orlando, e João, e Eustáquio, e Marinaldo. Uma Hidra de Lerna multiplicada em cabeças redivivas. É homem. É negro. Chora e incomoda. E agora é palavra. Em greve de fome, protesta contra a morte do companheiro, Pedro Luís. Estudante. Como ele. 
No dia em que enfrentou a polícia na passeata contra os cortes de verbas da Educação, acreditou que gás de pimenta e cassetete seriam o limite. Da violência. Da bestialidade. Da dor. Não conhecia as fronteiras alargadas do ódio. Ou se esqueceu delas. Por negação, fuga. Esqueceu. Os insultos. As provocações. As surras do pai. O pastor apontando para ele, sentado no banco da igreja para a qual a mãe o arrastava, e dizendo: Abominação! O bullying agressivo, durante o ensino médio. O bullying disfarçado, na faculdade. 
Quando Pedro Luís caiu, fugindo das investidas da polícia, soltou a mão dele sem querer, e os dois se separaram. Foi um instante. A porra de um instante. Voltou, em contrafluxo, perguntando, buscando pelo companheiro. O celular insistindo em chamadas inaudíveis. Caixa postal. Vozes gritando palavras de ordem de um jeito ensurdecedor. E de repente um grupo de estudantes em pânico, correndo e repetindo: Mataram o cara! Mataram o cara de porrada! 
Foi assim. Na hora em que Pedro Luís se levantou do tombo, não viu mais o companheiro. Olhos ardendo por causa da fumaça de uma bomba de gás lacrimogênio, afastou-se para uma rua lateral para comprar uma garrafa de água mineral em algum barzinho. Precisava lavar o rosto. Vinte metros à frente, cruzou com um grupo de soldados da PM. Um deles viu a bandeira com as cores do arco-íris pregada na sua mochila e partiu para cima dele. Os outros fizeram o mesmo. Chutes, socos. Cassetetes arrebentando com força o seu corpo. Viado filho da puta! Estava na manifestação atirando pedra na gente, né seu boiola? Comunista de merda! Pedófilo! Comedor de caralho! Acabou a putaria, gayzinho! Não adianta berrar que aqui o seu macho não vai te escutar! E se ele vier a gente dá um jeito nele também! Começa a rezar, vagabundo!
Ao redor, uns poucos comerciantes e pedestres. Nenhum olhar de horror. Nenhuma intervenção. Nenhum basta. Da janela de um prédio, alguém gritou: É isso aí! Acaba com a putaria desses viados no meio da rua! Alguns risos. Comentários. Aplausos vindos de uma outra janela. Deitado de costas, ferido, quase imóvel, Pedro Luís tentou alcançar com o braço quebrado a mochila caída ao seu lado. Queria pegar o celular. Para pedir ajuda. Para avisar o companheiro. Para qualquer coisa que significasse socorro. Mas um último soco acertou a sua cabeça. E ele parou de se mexer. Um dos soldados chutou o corpo inerte para se certificar de que ele estava mesmo morto. A frutinha não aguentou a pressão, disse rindo. Os outros soldados riram com ele. Sem remorso. Sem medo das testemunhas. Resistência à prisão, disse um outro olhando as pessoas em volta de forma ameaçadora.
O homem da calçada para de falar por um momento. Está fraco. Definha de ausência mais que de inanição. Mas resiste. Não quer que a morte do companheiro seja estatística. Por isso a greve de fome. Ao seu lado, um cartaz exibe a frase: 


Cadeia para os assassinos de 
Pedro Luís

Ele ainda acredita que as pessoas podem se conscientizar. Elas precisam saber que não vão nos quebrar, nos mudar, nos diminuir. Que é delas essa carga de responsabilidade, ele diz com a voz num sussurro de exaustão. Eu quero justiça. Quero ver esses policiais atrás das grades. Quero que Pedro Luís descanse em paz. É pedir muito? 
Eu tento tirá-lo dali. Insisto. Argumento que há outras formas de luta. Não quero lhe contar que não há mais lucidez nas pessoas. Só prepotência e fúria. Que muitas passam por ele sem vê-lo. Que muitas riem da sua ingenuidade. Que muitas o consideram louco. Que muitas se sentem incomodadas com a sua presença atrapalhando o trânsito na calçada. Que muitas querem saber da sua história apenas para dizer: Bem feito para esses baderneiros! Ou variações mais agressivas do mesmo texto: para esses viados, para esses comunistas, para esses drogados, para esses pretos fodidos, para essa gentinha que não sabe o seu lugar. Ele precisa entender que está em risco. Que o que diz está indo parar em muitos ouvidos. Falo da minha preocupação. Em retorno, recebo um único olhar que me revela quem de nós é o ingênuo. Casualmente, com sua voz enfraquecida, ele me conta que mais cedo deu entrevista a uma repórter sobre a morte de Pedro Luís. 
Então, é isso. Ele sabe. De cada risco, de cada obstáculo. Não há acaso nem descontrole nas suas atitudes. Somente obstinação. E nada do que eu diga vai fazê-lo recuar. Eu me despeço. E ele não me detém. 
A intenção de me afastar dura apenas três dias. Já estou de volta, buscando por ele na calçada. Não há ninguém. Uma das formigas obreiras chamou a polícia para retirá-lo da rua. Para levar embora a sua figura incômoda. Para calar a sua boca que repete sempre a mesma narrativa. Que pede justiça. Ele se recusou a ir. Os soldados o agarraram. Ele se debateu. Foi imobilizado com cassetetes. Talvez os mesmos cassetetes sujos com o sangue de Pedro Luís. Apanhou sem gritar. Quis sentir igual ao companheiro morto; ao menos um tanto da mesma dor. Quando o colocaram na viatura, ele estava desmaiado, conta o segurança de um prédio. Já faz dois dias que ele não volta, diz a atendente de um café. 
Então eu sei que nunca mais vou vê-lo.
Bem longe da avenida das formigas obreiras, o corpo de um jovem negro dá entrada no necrotério. Encontrado na véspera, num lixão, com ferimentos múltiplos. Indigente. As digitais foram raspadas e o rosto é uma posta irreconhecível de carne e sangue. Consta do laudo de necropsia que morreu de ferimentos múltiplos causados por surra. Cegueira causada por queimaduras. Fratura de pernas e braços. Desidratação severa em decorrência da privação prolongada de alimento. Ânus com sangramentos, fissuras e vestígios de espermas variados, indicando estupro coletivo ainda em vida. 
Desço a avenida com os olhos em ângulo agudo. Como as gentes que não sabem o que buscam. Faz tempo que não venho por aqui. Tenho evitado. Mais adiante, na calçada, um vulto. Por um instante, penso que ele voltou. Mas antes que eu me aproxime, vejo o desconhecido que se levanta do chão, segurando um cartaz com as duas mãos. No quadrado improvisado de cartolina, uma linha:

Somos todos Pedro Luís




(Conto originalmente escrito para a antologia “Antifascistas”, Editora Mondrongo, 2020).

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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


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