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quinta-feira, 15 de março de 2018

confraternizando




Entrou sozinho e disse boa tarde a estender-me uma mão húmida e sem pressão, viscosa, mesmo. Nem lhe dei atenção, a olhar a querida Margarida que afinal tinha vindo. Que bom, pensei eu a beijá-la, efusiva, que eu gostava, e muito, que a minha amiga Margarida tivesse conseguido vir. Ficámos a perguntar-nos que é feito, mas já ela cumprimentava um outro que eu nem sei quem era: gente mais nova; gente que tinha entrado na empresa, depois de eu me ter aposentado. E reparei que o homem continuava pespegado, ali, a dois passos.
Tinha nele qualquer coisa que ia mal com o sorriso tímido; um não sei quê falso estampado nos olhos cinzentos com espessas sobrancelhas a sombreá-los.
Um bonito homem, mas desinteressante, pensei eu enquanto via o Zé Eduardo a sorrir-me: que saudade! e abraçámo-nos.
Tinha-me perguntado: lembra-se de mim?
E eu não me lembrava, mas não disse. Sorri-lhe, apenas, a olhá-lo como se tentasse descobrir algum traço dele no meu passado, mas esvaida, sei lá eu porquê, de qualquer interesse.
Insistiu. Afirmou que tinha estado um ano e meio na empresa, e eu nem duvidei, mas era como se nunca o tivesse visto.
Não se lembra do Crisóstemo Ricardo?! exclamou, e lá teria as suas razões para achar estranho que eu não o reconhecesse.
Mas não, nem aquele nome me dizia nada; e não me lembrava da cara, se bem que achasse estranho que tivesse esquecido aquele arzinho pacóvio a querer parecer ser outra coisa. Se o tinha visto, varrera-se-me.
E ficamos assim, ele na dele e eu na minha, cumprimentando os conhecidos que passavam, e eu talvez tenha sido deselegante, antipática, mesmo, depois que ele voltou à carga: se eu não me lembrava duma sessão em que ele tinha estado a dizer versos; assim mesmo o disse: versos; e eu ri-me, dei uma gargalhada descomposta e disse, peremptória, como ainda não lhe tinha dito: não, não me lembro, nada; e disse desculpe; mas não, não tinha qualquer ideia daquela cara.
Terá ficado ressabiado que esta gente tímida armada de vaidades ou, melhor dizendo, esta gente vaidosa a dar ar de tímida, é gente para ser levada com jeito ou ficam ressentidas e viram feras.
Nem terá sido o caso e, ainda assim, Ana Cláudia viria contar-me, lá pelo fim do dia, ela que adora ouvir num lado e vir contar no outro.
Sabes? começou.
E repetiu, adiantando.
Sabes? aquele insonso do Crisóstemo...
Quem?! interrompi-a eu.
Aquele que ficou a teu lado na mesa, ao almoço.
Sim, tinha ficado na mesa em que almocei com mais nove funcionários, uns já aposentados, como eu, uns velhos e outros na flor da idade. Ficara sentado do meu lado esquerdo. Coisas de acaso, ou porque tínhamos organizado as mesas pela letra do primeiro nome, e lá estavam os Carlos, dois, as Célias como eu, que éramos outras tantas, uma Cátia, um Celestino, uma Cristina, uma Celísia e uma Cinthia, brasileira. E o dito Crisóstemo.
Ana Cláudia ficara na mesa dos ás.
Estava esfusiante num vestido amarelo a dar-lhe pelo tornozelo, com um decote em bico até meio das costas. Calçava sabrinas pois, dizia ela, os saltos altos lhe faziam cãibras. Envelhecera com elegância e nem pintava o cabelo de louro ou de azeviche, como a maioria das mulheres a taparem, desgostosas, as cãs que se lhes vão espalhando; tinha o cabelo pintado num azul mate que lhe ia bem com a cor dos olhos.
Ah! esse?! balbuciei sem o menor interesse e sem dar grande atenção à lenga-lenga de Ana Cláudia. Ela queria contar-me. Dizer-me que o conhecia, ela que conhecia sempre meio mundo em cada local onde estava; que ele era um presunçoso, um convencido. E exclamava: ora o Crisóstemo que sempre teve a mania que ele é que sabe, e tu a cagar postas de pescada. Ela que nem tinha estado na nossa mesa, teria ouvido contar. Quem sabe se teria sido a Celísia que nunca tinha ido muito à bola com a minha cara. Devia ter sido ela. E a Ana Cláudia repetia-a, prosaica e a rir-se como se eu também estivesse a rir-me com ela: armaste-te e ele achou-se depreciado.
Ora bem, convencimento e vaidade, foi o que lhe vi bailar por baixo daquele sorriso de bom moço. Eu a pensar, assim, com os meus botões, mas sem memória de quem ele seria.
Tem um sorrisinho manhoso numa carinha de pacóvio, disse eu, mas Ana Cláudia nem me ouvia.
Cantava, lembras-te? dizia, embrenhada apenas no que me queria contar.
E foi quando se me fez luz.
Lembrava-me, sim senhora! se me lembrava, agora, do Crisóstemo! Tinha o cabelo aloirado e usava óculos com lentes de fundo de garrafa.
Ao tempo que isso fora!
O Crisóstemo da contabilidade que andava a tirar histórico-filosóficas.
O funcionário do primeiro piso que fazia rimas. Ele mesmo o propalava: faço versos em rima.
E cantava, sim, cantava!
Sorri-me de não me ter lembrado, antes.
Agora com cabelo grisalho, teria mudado os óculos por lentes de contacto.
Cantava, sim senhora!
Desafinado e com voz de falsete, sem alcance nem vivacidade, mas cantava.
Lembro-me, agora, dele, disse eu a rir-me de ter descoberto e Ana Cláudia sem calar-se um instante a contar que o tal Crisóstemo tinha dito barbaridades a meu respeito.
Deixei Ana Cláudia que falava, falava, e  dirigi-me ao fundo da sala onde o homem tomava  um drink no bar que improvisáramos.
Peço perdão, disse-lhe a estender-lhe a mão que ele demorou a segurar porque nem entenderia a minha aproximação.
E sorri a dizer-lhe:
Lembrei-me, só agora, dos seus versos. Ainda canta?
Foi à capella que cantou e corou quando o aplaudiram.
E disse versos, como ele mesmo apresentou: vou dizer agora uns versos que tenho escrito.
E disse.

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