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terça-feira, 20 de março de 2018

A VOZ DA SUA BELEZA

1962

21 de janeiro, 05:21 h.  Um corpo é encontrado boiando nas marolas da Praia da Urca.
Há uma perfuração na testa e mãos amarradas. Está em decomposição. Irreconhecível.

21 de janeiro, 10:42 h.Um rabecão do Instituto Médico Legal recolhe o corpo sob os
olhares de pequena multidão de curiosos. Todos tapam o nariz.

21 de janeiro, 22:48 h. O legista conclui que um homem de aproximadamente 35 anos veio
a óbito há pelo menos 48 horas com um tiro frontal de arma de fogo calibre 32. Não há
outros sinais de violência, além das escoriações nos punhos provocadas pela força da corda  amarrada.

25 de janeiro, 09:23 h. Até a essa hora, ninguém havia reclamado o corpo, que também não
havia sido identificado. As digitais estavam deterioradas pelo tempo em que ficaram imersas.
Alguns peixes cuidaram de esfacelar os dedos.

7 de janeiro, 18:32 h. Raul da Silva Maciel acorda da anestesia depois de três horas de uma
cirurgia exploratória na região abdominal. Mal abre os olhos, se dá conta de que está numa
UTI pós operatória. Grogue e atordoado. Recebe a visita do cirurgião. Dá-se um diálogo curto e grosso.
- Sr. Raul, carcinoma ductal no pâncreas. 
- Só isso? 
- Isso é tudo, não há mais o que fazer. 
- Quanto tempo? 
- Três, quatro meses. 
- Três, quatro meses de morfina, por favor. 

9 de janeiro, 19:07 h. Raul da Silva Maciel abre com dificuldade a porta do seu quitinete no
Catete. Com a mesma lentidão caminha à cristaleira no centro da pequena sala. Carrega uma
caixa de ampolas de morfina auto aplicáveis, como se aplicavam soldados na Segunda Guerra. Suas mãos estão trêmulas, a ponto de quase deixar espatifar no chão a garrafa de uísque, cujo gargalo
leva à boca.

10 de janeiro, 06:32 h. Raul acorda com gosto de banco de igreja na boca, embebido em uísque e bactérias produzidas pela noite entre resíduos nas gengivas e tártaros. Está jogado no tapete,
ao lado da garrafa vazia. Não sente dores. Sua cabeça lateja. Esfrega os olhos lentamente.
Um letreiro de neon pisca dentro de sua cabeça: Morgana, Morgana, Morgana.

18 de janeiro, 21:00 h. Morgana Ferrante estreia no La Rose D´Or. Suas tentativas de se tornar
cantora foram quase frustradas, até que lhe estendeu a mão o Deputado Federal por Alagoas
Leonildes Ferrante, a quem canta “Ne me quitte pas” olhando olho no olho do Deputado, sentado
na primeira fila, ladeado de Juvêncio, motorista e fiel capanga.

18 de janeiro, 23:05 h. Fim do espetáculo. Morgana é recebida no camarim por um assistente de palco que lhe entrega rosas vermelhas. Há um bilhete anônimo. Porém, as palavras lhe estonteiam. “Sempre acreditei na voz de sua beleza.” Morgana fica pálida e rasga o cartão.

18 de janeiro, 23:18 h.. No banheiro do La Rose D´Or , sob a permanente vigília de seu motorista
corpulento, o Deputado Leonildes ajeita a glostora no topete, ainda inebriado pela apresentação
de Morgana. Não percebe a aproximação de um homem magro, barba por fazer, um tanto cambaleante, um tanto curvado, um tanto firme no dizer.
- Coronel Leonildes! Sou louco pela sua mulher.
- Que traste é você?
- Um homem que ama sua mulher. Morgana, Morgana, Morgana!
- Que despautério!
- Amo sua mulher mais que seu dinheiro pode comprar! Vossa Excelência porca não sabe da missa 
a metade. 
- Juvêncio! Tire esse cabra daqui! E some com ele daquele jeito!
Raul é amarrado nos punhos. Leva um mata leão e perde os sentidos.


1961

20 de outubro, 16:34 h. A primeira aula de Morgana no Conservatório de Música é um fiasco.
Os professores se entreolham desencantados. Um deles quebra o lápis e joga os cotocos no chão.
O pianista se compadece. Mais que isso: fica encantado com a beleza de Morgana, apesar da voz
rouca e de precária afinação. O nome dele é Raul.

21 de outubro, 17:07 h. Chove a cântaros no Rio de Janeiro. À saída do Conservatório, Raul cede
seu paletó à Morgana, que espera o bonde numa marquise, se esquivando do aguaceiro. Dá-se um
comedido diálogo:
- Você não é o pianista? 
- Sim. 
- Desculpe o vexame de hoje.
- Não há o que se desculpar. Acredite na voz da sua beleza.
Morgana ruboriza. Raul também.  Chega o bonde para Rua Aguiar na Tijuca. Morgana sobe, deixando rabichos de olhar para Raul. Que lhe levanta o chapéu ao longe.

27 de outubro, 17:10 h. Raul e Morgana se encontram no mesmo ponto. Desta vez sem chuva.
Dois bondes se aproximam. O primeiro: destino Águas Férreas. O segundo: Aguiar-Fábrica.
Raul disfarça, deixa seu bonde passar e muda de rumo. Dá-se um segundo e contido diálogo:
- Tijucana? 
- Sim. 
- Eu também. 

29 de outubro, 17:10 h. Raul pega o mesmo bonde de Morgana, dois bancos atrás. Fica espreitando
encantado sua nuca revelada pela brisa que levanta seus cabelos. Raul percebe que Morgana vai
descer do bonde. Apressa-se, passa a sua frente e, se equilibrando no estribo, oferece sua mão.
Dá-se o terceiro diálogo:
- Muito gentil, pianista. 
- Raul, me chame de Raul. 
- Tocas há tempos no Conservatório? 
- O bastante para conhecer a voz de sua beleza. 
Morgana e Raul fitam-se. Olhos tímidos que sorriem.

31 de outubro, 17:22 h. Raul fecha o piano e vê Morgana chorando, também a cântaros, na coxia
do auditório, semi encoberta por uma cortina. Dá-se o quarto diálogo.
- Posso ajudar? 
- Não. É pessoal. 
- Se precisar... 
- Obrigado. Você é muito gentil. 
- Vai de bonde? 
- Vou, mas hoje prefiro ir sozinha, desculpe. 
Morgana parte às pressas. Raul faz que vai atrás, mas não vai. Medo.

18:33, 31 de outubro. Hildete, mãe de Morgana, está esperando a filha no portão.
- Enxuga essas lágrimas, lava sua cara de desenxabida. 
- Ele veio mesmo?
- O Deputado veio só para uma visita de pêsames. Era amigo de infância do seu pai lá das Alagoas. 
- Mas papai se foi há mais de ano! 
- Não interessa o pretexto, ele veio ver você. 
- Mas tem idade para ser meu pai. 
- E dinheiro pra tirar a gente dessa pindaíba.

18:17, 3 de novembro. Morgana se arruma para um jantar com o Deputado Leonildes Ferrante.
Olha-se no espelho por séculos. Não está confortável. Pensa no pianista que nem lembra o nome.
Romeu? Raul? Rui? Seu coração bate forte pelo que poderia ter sido. Pelo que não foi. Pelo não
era para ser. Lembra uma frase dita por Raul ajudando a descer do bonde, que lhe acalentou
sonhos de ser cantora.

16:38, 10 de novembro. Um homem senta-se súbito ao lado de Morgana no bonde.
Morgana se assusta, mas uma meiguice desconcertada toma conta do seu olhar. Dá-se um
diálogo definitivo.
- Você? 
- Sim, seu pianista. Sumiu uma semana? Não apareceu mais no auditório. 
- Não posso mais estudar canto aqui, vim me despedir dos professores. 
- Como assim? 
- Vou ter aulas particulares. Embarco mês que vem para Paris.  

21:29, 10 de novembro. Raul faz da garrafa de uísque uma mamadeira. Dorme no tapete da sala
da quitinete.

07:05, 11 de novembro. Raul acorda amarelado. O espelho não nega. Abre a camisa amarfanhada.
Parece uma gema. Apalpa o lado direito do abdômen. Dores. Franze a testa, lava o rosto sem gosto.
Toma um sal de frutas lentamente. Olha as borbulhas no copo e vê um letreiro de neon: Morgana, Morgana, Morgana.

16:32, 13 de novembro. Fraco e com suspeita de icterícia, Raul sobe no estribo do Aguiar-Fábrica
destino Tijuca. Salta na rua de Morgana. Assiste atrás de uma árvore a um Buick preto estacionar
no portão e um motorista corpulento abrir a porta para Morgana entrar. Estonteante e trágica visão.
Vestido colado no corpo, cabelo preso, nuca em nudez plena, sandálias de salto, sorriso rodeado
de batom carmim e um colar de pérolas que acende a rua. Um cinquentão altivo e garboso sai do banco traseiro do carro e a recebe com um abraço interminável. Talvez esteja acontecendo um beijo -  não se sabe, Raul fecha os olhos. E vomita bílis na calçada.

14:12, 17 de dezembro. Raul aparece no Conservatório onde estava licenciado. Todos se
espantam com sua cor amarelada, sua voz claudicante e um insincero sorriso para todos e para
a vida. Ouve não sabe bem de onde, cochichos indesejáveis entre duas alunas.
- Lembra da Morgana?
- Aquela bonitinha da voz rouca desentoada?
- Casou com um Coronel das Alagoas. Deputado Federal. Herdeiro de usineiro.  Idade do pai 
dela. Bonitão e rico de alça de ouro no penico.
- Essa pequena nunca me enganou. 
- Agora chama-se Morgana Ferrante. Foi para Paris. Estuda canto.
Raul desmaia.

07:46, 20 de dezembro. Raul tem alta em um Pronto Socorro, para onde foi levado na
ambulância chamada às pressas pelos colegas do Conservatório. Pega o bonde Aguiar-Fábrica
e salta na rua de Morgana. Fica encostado duas horas no muro em frente, olhar fixo na janela do quarto que nunca conheceu, supostamente da Morgana que também nunca conheceu como sonhou.
O portão está trancado. As portas e janelas estão fechadas. Uma tabuleta diz Aluga-se. 
O vazio corrói.

16:40, 20 de dezembro. O Deputado Leonildes assiste à última audição de Morgana, agora
Ferrante, para uma banca de chansonniers em Paris. Não há entusiasmo entre os franceses,
apenas um grito solitário de “Bravo!”, seguido de um indiscreto “Arretada, minha cabrita!”. Morgana se curva agradecida.

23:52, 24 de dezembro. Raul na quitinete do Catete. Um passarinho depenado na gaiola.
Gargalo da garrafa de uísque sobe e desde à boca. Nos olhos fechados na cabeça jogada no sofá,
pisca o recorrente neon: Morgana, Morgana, Morgana.

23:52, 24 de dezembro. As luzes de Paris iluminam as mãos dadas de Morgana e Leonildes pelas margens do Sena. Carregam copos e uma garrafa de champanhe. De olhos para a Notre Dame, saúdam o nascimento do Menino Jesus. Erguem as taças e se benzem. Morgana encosta o rosto
no peito aconchegante de Leonildes. Trocam afagos agradecidos, um pelo outro.
Por motivos diversos.

23:52, 31 de dezembro. Parece que o tempo parou na quitinete de Raul. Só a barba crescida dá
sinal que uma semana se passou. No mais, o gargalo, a garrafa renovada, o corpo cada vez mais magro jogado no sofá. E claro, o recorrente neon no breu dos pensamentos.

1962

17:36, 1 de janeiro. O casal Ferrante desembarca no Galeão. Réveillon inusitado a bordo da
primeira classe da Panair. Só faltaram fogos de artificio, por incompatibilidade física, e um amor
nu e ardente, por pudores. No mais, muita champanhe e juras falsas e francas de amor eterno.

08:12, 11 de janeiro. As letras de um colunista social são ferozes: “O casal Morgana e Leonildes Ferrante desembarca de Paris. Ele trazendo a amada pelo braço. Ela trazendo na bagagem um pré contrato para cantar no Le Rose D´Or, a nova febre dançante de Copacabana. L´amour, toujour 
l´amour.”. Sobre a legenda, a fotografia de dois apaixonados sorridentes. Raul recorta Morgana do retrato e cola na parede. Tudo dói. Raul auto aplica uma ampola de morfina.

11:01, 12 de janeiro. Raul só tira os olhos do retrato de Morgana para e levar o gargalo da
garrafa de uísque à boca automaticamente. Lembra do dia da sua estreia no La Rose D´Or. As horas  passam intensas. Como passam a morfina, o uísque, o neon.

14:28, 13 de janeiro. Raul decide por em prática um plano para deixar de viver.  Não tem coragem de fazer pelas próprias mãos.

21:20, 18 de janeiro. Do fundo da La Rose D´Or, Raul assiste à Morgana Ferrante entrar no palco. Começa a cantar "L´himne à l´amour". Pelos olhos de Morgana, que fecham-se e abrem-se
para a primeira fila, Raul sabe que não é para ele. Disfarça, e antes do fim do espetáculo dirige-se ao banheiro.

06:15, 19 de janeiro. Uma mulher dá entrada num Pronto Socorro Público, entregue por um táxi não identificado. Tem o rosto retalhado por um corte extenso do supercílio ao lábios, carente de suturas urgentes. Sua boca sangra por uma suposta  perda de dentes. Apresenta hematomas no olho esquerdo e no dorso lombar, configurando lanhos produzidos por objeto contuso, fivelas de cinto, a conferir. Com a voz rouca e débil, consegue balbuciar: "Meu nome é Morgana. Caí da escada."

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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