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terça-feira, 4 de agosto de 2015

Colecionadores


Um dos poucos livros de E.L. Doctorow, falecido na semana passada, ainda em catálogo no Brasil, Homer & Langley, traz uma curiosa (e trágica) história real.

De fato, todo colecionador compulsivo que mereça o nome já ouviu falar da dupla. No entanto, foi Doctorow quem garantiu aos irmãos Collyer essa fama póstuma: para quem não sabe, Homer e Langley foram literalmente consumidos pelos livros e papeis que acumularam ao longo de anos. Digo, sim, literalmente, uma vez que morreram soterrados em seu apartamento no Harlem. Os vizinhos se deram conta que os irmãos não eram vistos a dias e chamaram a polícia. Isso em 1947.

A polícia entrou na casa e encontraram cerca de 200 toneladas de material acumulado nos quatro andares do imóvel. Mais de dez mil livros, milhares de jornais e discos e todo o tipo de objeto (até máquinas de raio-X). Encontrou o cadáver de Langley já parcialmente devorado por ratos; parece que ele morreu enquanto tentava alcançar o irmão paralítico e cego, que morreu de fome e sede.

Viraram nome de síndrome (Síndrome dos irmãos Collyer) - idosos que abandonam a vida social, se isolam em suas residências e passam a acumular todo tipo de material.

Alberto Manguel, em A biblioteca à noite, fala de um vizinho dos Collyer. Em 2003, Patrice Moore, de 43 anos, morador do Bronx, foi resgatado, felizmente com vida, dos escombros de sua casa. Seu pequeno quarto estava completamente tomado (até o teto) por papeis e livros. Uma avalanche de livros e jornais acabou soterrando esse colecionador, que ficou soterrado por dois dias, até que a polícia e os bombeiros conseguissem resgatá-lo.

Mas os colecionadores da vida real, mesmo quando transportados para a literatura, não chegam aos pés dos colecionadores fictícios. O italiano Massimo Bontempelli (1879-1960) criou o barão Raimundo della Valle, que também dedicou sua curta existência a "colecionar coleções". O barão não teve a "sorte" de Dom Quixote, que tinha o cura e o barbeiro para eliminar de sua biblioteca os livros considerados "perigosos" à sua sanidade mental.

Em um livro do século XVI, de Comino, se depara com um sujeito que teve quatro filhos: um natural, três legítimos (um destes, adulterino, nascido de uma criada). E resolve, então, colecionar filhos.

E o projeto se inicia com o filho natural (com a jardineira), o legítimo, o adulterino (que, presumivelmente, não poderia faltar), o incestuoso (com a cunhada, Irmã de sua esposa), o putativo (isso mesmo). E a coleção parecia completa...

Mas tudo mudou quando, lendo o canto VI da Eneida, deparou-se com os seguintes versos:

Não vês ali aquele audaz mancebo
que naquela hasta pura o braço apoia?
A luz há de ser dado antes de todos:
O primeiro dos filhos que, no Lácio,
Terá de ti Lavínia

Ele providenciará, então, o filho derradeiro...o filho "póstumo".

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Fabio Bensoussan
Nasceu no Rio de Janeiro (1973) e hoje mora em Belo Horizonte, com sua esposa e os dois filhos. É procurador da Fazenda Nacional e recentemente começou a escrever contos e a traduzir textos literários.
todo dia 04


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