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terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Desembarque

O avião pousou com tal suavidade, que o comissário soltou um comentário típico
de um entusiasta pela própria profissão: touché. Logo ele, pensei, tão acostumado com subidas
e descidas, ainda é capaz de se encantar com um toque suave no planeta.
A partir daí, os agradecimentos de sempre, as recomendações de permanecerem sentados
até o completo estacionamento da aeronave e muito cuidado ao abrir os compartimentos de
pequenas bagagens sobre as poltronas.

Doze horas de voo acabavam. Braços espreguiçavam, bocejos se multiplicavam.
Liberados os cintos de segurança e tudo vira uma final no Maracanã lotado.
Pessoas se agitam no menor espaço, pegam suas bugigangas, catam seus pertences de mão,
maletas passam sobre cabeças que se abaixam, excusez moi, desculpe, obrigado, merci.
Perfilados, todos esperam a ordem do início da marcha.

À minha esquerda, já no corredor, uma belezura de uns vinte e poucos anos,
cabelos castanhos claros mal presos a uma piranha desalinhada, semi abraçada por uma echarpe,
bolsa à tiracolo, segura com uma das mãos a alça comprida de  uma mala de rodinhas cor de rosa,
última forma em design, suponho, mais fashion e elegante impossível.

Tem os olhos fixos no seu celular. Seus dedos da outra mão e de unhas bem feitas estão nervosos.
De esguelha, vejo que está trocando mensagens. E vejo também: subitamente seu rosto contrai,
as narinas dilatam, as sobrancelhas fortes e delineadas se enviesam, a testa lisa franze,
a boca fechada é mordida pelos dentes, e uma lágrima jorra de seus olhos verdes.

Discreta, não emite som. Percebe que eu havia percebido o momento.
Também discreto, desvio ligeiro os olhos à janelinha distante,
supostamente distraído pelas manobras do pessoal de terra em torno do avião.
Indócil curiosidade. Volto a olhar a menina com jeito de mulher - ou vice-versa -, que,
agora, leva as costas das mãos aos olhos, enxugando vestígios de uma emoção repentina.

Finjo que não vejo. Só finjo. Minhas antenas captam a criatura tão mais emocionada quanto discreta,
repetindo as contrações faciais, mordendo os lábios, suspirando baixinho, deixando o rosto molhado
e fungando o nariz tentando disfarçar soluços.

E já que o diabo da fila não anda, penso em gritar para as pessoas abrirem passagem para ela.
A moça precisa chegar antes. Penso também em perguntar se está bem, mas sei lá, estava na cara que
ela não estava bem, e o que eu poderia fazer, se é que eu poderia fazer alguma coisa? Sou péssimo nesses momentos.
Poderia soar intrometido, parecer abusado, galanteador com prazo vencido, intruso.
Penso em ajudá-la carregando sua mala design cor de rosa, mas só penso. A curiosidade incorrigível me paralisa.

A fila anda e ela segue em frente, Smartphone entre os dedos, cabelos castanhos claros desalinhados, merci, au revoir, obrigado, bon journée, até que alcança a porta do avião e seus passos aceleram aeroporto adentro.

Fila da Polícia Federal. Imensa. Vai e vem serpenteando o salão gigantesco,
fazendo as pessoas passarem tais zumbis umas pelas outras dezenas de vezes.
Claro que não tiro o olho daquela fonte inspiradora de vida, assim como ela só tira os olhos verdes do Smartphone para ajeitar a alça da bolsa, que teima em cair do ombro.

Tem um olhar evidentemente aflito, triste e cabisbaixo. Segue seu zig zag no automático, resignada pelos caprichos dos trâmites, incapazes de perceber que alguém naquela multidão está passando maus bocados, flechada por algum motivo grave e contundente.

Continuo a discreta espreita e ainda percebo uns e outros constrangidos espasmos de emoção no rosto da moça. Chorinhos súbitos, baixinhos, que vão e vem, perceptíveis apenas ao enxerido covarde curioso que sou.

Pronto. Brota um manancial para afogar o meu imaginário.
Quem deve ter morrido? "Menina, volta correndo porque seu pai está muito mal."
Claro, o celular deve ter dito coisa pior.

Pode não ser o pai. Pode ser a mãe, a avó, o avô, irmão, amigo, amiga, o namorado.
Mas por que morreria o namorado? Um acidente, talvez.
Trágico demais. Pode ter sido a notícia de uma doença de um querido,
a confirmação de uma gravidez indesejada, o que fazer com o futuro?
O que dizer à família?

Pode ter sido o fim do namoro -  o amor é a coisa mais triste quando se desfaz.
Mas súbito assim? Por uma fria web mensagem? Deve ser um mané esse cara.
Ou teria sido a melhor amiga que confirmou estar namorando exatamente o namorado mané enquanto ela vagava pelas margens do Sena?
Sena? Teria ela deixado um amor avassalador em Paris?
As lágrimas bem poderiam ser um coquetel de paixão e saudade, alimentada por um email romântico e sincero. Ái como dói uma separação. Ái como é gostoso chorar por amor correspondido.

Enquanto a fila anda a passos indolentes, observo a menina com traços de mulher -  ou vice-versa -,
se distanciando e se aproximando lentamente de onde estou, num vai e vem recorrente,
onde vão e vem infinitos pensamentos, dos mais tristes e trágicos aos mais prosaicas e bobinhos.

Chego a imaginar que seu poodle pode ter fugido de casa, ou que sua calopsita possa ter sofrido um enfarte, mas por respeito à gravidade do seu rosto, dispenso tais possibilidades.

Finalmente ela chega ao guichê muito antes de mim.
Apresenta seu passaporte atabalhoada, conversa alguma coisa com a policial, que,
suponho, lhe deseja boas vindas educadamente. Sem querer, atraso a fila para acompanhar o que se segue. Estico o pescoço o mais que posso, girafa de binóculo, vejo a criatura apressada correr em direção à alfândega.
Algo de muito sério deve ter acontecido. Não passou pela esteira de malas, não despachou bagagem maior. Passa ao largo do free shop; mais estranheza. Que motivo tão forte levaria uma mulher menina - ou vice-versa -, tão charmosa e bem cuidada a não passar pelos perfumes, cosméticos e outras delicadezas de um free shop?

Sortuda, não é parada pelos fiscais.

Lá longe de onde estou, vejo a porta do desembarque se abrir.
E a criatura aflita puxando sua malinha cor de rosa design, seu cabelo castanho claro desalinhado,
sua echarpe esvoaçante, desaparece na multidão.
Deixando um rastro de inquieto mistério, derramando infinita poesia.

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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