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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

O HOMEM QUE AMEI

O HOMEM QUE AMEI
                                                                     

Houve uma época em minha vida que pensei ter voltado à terra para ir em busca do homem que amo. Era jovem e acreditava nessas coisas de outras vidas, retornos, enfim... Essas coisas que tornam mais digerível a existência. Então, procurei por ele. Procurei, procurei, até que, finalmente, o encontrei. E como o amei! Ainda hoje, em minha memória, parece que o vejo.
   
O homem que amei tinha olhos que guardavam o mar em tarde de chuva.

O homem que amei tinha passos firmes e gestos largos. Por vezes assumia um ar arrogante que tentava disfarçar sua timidez e insegurança. Mas, embora tímido e inseguro, o homem que amei era extremamente arrojado em seus sonhos, projetos e realizações.

O homem que amei tinha a voz aveludada que nada dissimulava e um semblante melancólico. Sua voz e semblante revelavam as emoções que sentia: da mais doce ternura à raiva mal contida; da pureza quase infantil à ironia mais sutil; da profunda tristeza à alegria que contagia. Por falar em emoções – é espantoso – mas o homem que amei conseguia vivê-las todas num mesmo dia.

O homem que amei tinha extremos loucos. Aproximava-me de Deus com a mesma facilidade com que me fazia conhecer o demônio. Com a mesma facilidade dizia impropérios ou revelava pensamentos sublimes. Por vezes agia e reagia como criança e, quase sempre, com a grandeza do homem vivido e sofrido.

O homem que amei conseguia me fazer curvar de tristeza ou explodir de alegria porque, como ninguém, ele sabia chorar quando era preciso e rir quando era o momento.

O homem que amei desabava diante das mazelas do mundo, mas crescia ao defender suas ideias com contundência.

O homem que amei tinha sonhos lindos, desejos simples e gosto sofisticado. Existia um ponto de interrogação no semblante meigo e forte do homem que amei, tipo, por que complicar o que é simples? A bem da verdade, o homem que amei era uma confusão e, por isso mesmo, me confundia e conseguia me surpreender sempre.

O homem que amei deslocava-se feito peixe fora d’água em meio à parafernália moderna, mas era rei em meio à natureza e no mundo das palavras. Era perspicaz e observador. Escrevia o dia a dia e comovia. Transformava asfalto em poesia.

O homem que amei era sedutor. Tinha paixões e provocava paixões.

O homem que amei era fascinante e delirante.

O homem que amei era intenso e raro.

Eu o conheci em seu reino, o das Palavras, o da Poesia, diante de uma máquina de escrever, e o amei desde então. Encontrei nele reflexos da minha alma. Nele havia o amor que tanto buscara. Torcia para que aquele homem conservasse a mágica do primeiro instante. Torcia porque, se perdesse a magia, ele perderia sua alma. Se perdesse a alma, não seria mais um homem raro. Se não fosse mais um homem raro, não seria mais o homem que eu amava. E daí, bem, daí minha vida teria perdido o sentido da volta.

Mas tudo isso foi há muitos e muitos anos. Perdi o homem que amei no tempo e no silêncio. Enviei um telegrama, não obtive resposta. Mandei um livro, não obtive resposta. O silêncio foi enorme, brutal. Há silêncios que são eloquentes, mas o silêncio ditado pelo homem que amei eu não soube interpretar. Afinal, se até Inês – aquela do Adoniram - deixara um recado pro Mané, ainda que num papel jogado no chão perto do fogão, por que eu não mereceria qualquer explicação?

Vida que vem, vida que vai, vida que leva... E a vida me levou até que aquele amor se desfizesse no tempo, tempo que se alongou, fazendo-me pensar, volta ou outra, se o homem que amei existira mesmo ou se eu o inventara.
 
Foi então que, hoje, ao abrir minha caixa de recados, encontro uma mensagem do homem que amei. De repente, assim, do nada. E foi como se ouvisse sua voz macia, chegando de algum pedaço remoto do passado.

Contou de sua vida, de seus amores e dores, de sua saudade e de utopias.

“Somos utopias. Utopias não deveriam falar, olhar, dizer, se expressar, se mostrar. Utopias deveriam apenas ser utópicas. Sonhadas, imaginadas, desenhadas, pintadas ao gosto de cada um. Nós dois nascemos utopias. Vivemos todo o tempo como utopia. Toda uma vida. Utopia é coisa linda para se levar na alma. Porque coração vai embora, a alma não. Utopia quando você ouve uma música, um som, um tom, um grilo. Utopias quando você, dentro de um avião, vê lá embaixo um belo horizonte e lembra que ali tem utopia. Quando você lê um verso, um conto, um livro, a biblioteca inteira e lembra utopias. Quando você passa num lugar e é atropelado por um utópico pensamento. Talvez a utopia venha num ônibus elétrico com letreiros apagados de um imortal Machado de Assis...”  A essa altura, as letras já embaçadas embaralhavam-se, parecendo dançar numa poça d’água. Bateu um cansaço infinito. Então desisti de ir até o final e deletei a mensagem.

Tirei os óculos, pensando nessa catarata que insiste em me lacrimejar os olhos. A velhice tem cada coisa... Preciso consultar um neurologista para saber a causa desse repentino tremor nas mãos. E um cardiologista também porque esta batida descompassada não é normal. Mas, antes, tenho que ver outro especialista, vai que esse nó na garganta seja coisa ruim...

Cecília Maria De Luca


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40 comentários:

Texto comovente, profundo e belíssimo! Você nasceu para brilhar ! Escreve tocando no fundo da alma! "Vivemos todo o tempo como utopia". Agradeço sempre por proporcionar maravilhosos textos! Esse foi um fenômeno!

Atemporal. A história de tantas mulheres e os homens que amaram. A sua, a minha, a história de tantas de nós. A boa ficção cheira à realidade. Amor, separações, encontros, memórias. Tudo retratado nesse texto honesto e intenso.

Obrigada, Maria Silvia. Sua leitura sempre carinhosa me envaidece sempre. Cinthia, você é minha ídola e sabe disso. Sua avaliação, sempre perspicaz e inteligente, me incentiva a continuar quando penso em parar. Valeu, amiga. Valeu mesmo!

Um conto nostálgico,não triste e sim transmitindo um relato de vida,muito bem narrado,ao ler consegui visualizar a mulher, gosto do estilo da escrita de Cecília,PARABENS !

Sem dúvida alguma, esse é um dos textos mais lindos que já tive a felicidade de colocar os meus olhos. Tão belo que, talvez, pudesse ser lido somente pelo meu coração ou pela minha alma. Sim, porque ele foi escrito dessa forma. Cecília conseguiu colocar em um pequeno pedaço de papel - ops,não é mais Inês, aquela do Adoniran. Então, ela conseguiu colocar na tela do computador tudo aquilo que almejamos em termos de amor, da eterna expectativa que vivemos para encontrar e vivenciar os nossos amores - eu diria, utópicos ou reais. Parabéns, de verdade!

VOCÊ FOI GIGANTE,ABRIU UMA CAIXA DE MÚSICAS E DEIXOU A BAILARINA DANÇAR...E DEPOIS A TAMPOU NOVAMENTE,SIMPLES ASSIM! FOI UM DOS QUE MAIS GOSTEI,DE CORAÇÃO.PARABÉNS,PUXA,PARABÉNS!

Como eu gostaria de viver este personagem num filme, na vida e numa despedida dramática e inesperada.
Belissimo!
Marcilio Matos

Ah, que bom Lauer!! Confesso que estava meio insegura com esse texto. Seu elogio me sossega um pouco. A vocês que não se identificaram e que apreciaram, meu muito, muito obrigada.

Ai, tanto sentimento que transcende o próprio tempo! Seu texto é de uma simplicidade, de uma delicadeza, que nos faz o convite: descompliquem seus sentimentos, apenas sintam! Que presente em pleno Valentine's Day! Você é linda, Cecília!

Interessante você dizer que seus neurônios migraram para o coração... Algo mais científico deve estar evoluindo em seu imo... Acredito sim que uma parte dos neurônios devem ter sido transportados pelas hemácias até seu cuore, pela profundidade e paixão em suas palavras... Porém outros tantos ainda continuam a realizar sinapses relâmpagos em seu cérebro, tal a sutileza de seu texto...
Acredito que os ares do Vêneto a tornarão célebre escreitora...
Obs: seu texto me lembra uma passagem entre neto e avô, já moribundo... Antes de rápida viagem o neto foi à casa do avô para se despedir... Ao beijar sua testa disse que estava de partida para a cidade onde nascera Joana... Tênue lágrima escorreu do olho esquerdo do velhinho... Sua esposa e a enfermeira que cuidava do avô ficaram sem nada entender... Então o neto o questionou: "Diga a elas quem é Joana, vô"... Abrindo os olhos encovados e com os lábios tremendo, o ancião sussurrou: "A mulher que amei..."

Muito sentimento, muita alma, muita realidade. Foi assim que senti ao ler cada frase sua. Sentimentos bons e ruins todos temos, alma é o "lugar" que guardamos nossos sentimentos e como dizia o Poeta Vinicius de Moraes ...Porque a vida só se dá pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu ...é a realidade.
Adorei ,me transportei para uma época de minha vida conforme ia lendo. Aliás Cecília ,esse texto não é escrever e sim mostrar sua magia linda que existe dentro de você .Parabéns! Amei!
Beijos enormes
Sandra

"O homem que amei tinha sonhos lindos, desejos simples e gosto sofisticado. Existia um ponto de interrogação no semblante meigo e forte do homem que amei, tipo, por que complicar o que é simples? A bem da verdade, o homem que amei era uma confusão e, por isso mesmo, me confundia e conseguia me surpreender sempre" - Esse trecho, para mim, resume uma perspectiva que só o tempo realmente soube mostrar. Parabéns mais uma vez por trazer um texto como o seu brilho e sua alegria.

Um texto belíssimo! Sinto-me privilegiada só de poder ler esta maravilha.

Perfeito... O fio condutor parece uma "Tirolesa": leva a gente de cima a baixo assim - vapt-vupt! O "HOMEM QUE AMEI" bem que poderia ser a "MULHER QUE AMEI"... aquele/aquela que "tinha olhos que guardavam o mar em tarde de chuva"; aquele/aquela que diz "“Somos utopias. Utopias não deveriam falar, olhar, dizer, se expressar, se mostrar." Parabéns por mais esse belíssimo texto... beijos...

Belo texto! Li, reli e fiquei emocionada! As palavras me deixaram embriagadas em sentir a paixão! O homem que amei com suas qualidades e defeitos. O seu texto foi bem profundo em minha alma. Me fez refletir sobre o amor e a utopia. Me levou a ver as minhas próprias utopias. Texto bem escrito e comovente. Parabéns!

Valeu, Geraldo! Obrigada pela leitura e, principalmente, pelo comentário que me encheu de felicidade. Emerson, você com sua alma sensível, sempre me emociona. Eduardo, você é lindo, obrigada! Obrigada, também, Marcílio. Arlete, você é uma pessoa que admiro e seu elogio me me deixou encantada. Sandra, obrigada, querida. Amei o que você disse. Fernando, que bom que gostou e que lembrança feliz na sua observação. Um beijo enorme no coração de vocês todos.

Maravilhosa construção do homem ideal, daquele que vive em nossa fantasia mas que não resiste aos acordes da dura realidade. Adorei o conto Cecília e cada vez me convenço mais de sua legítima vocação para combinar de maneira tão eficaz esses dois mundos, escrevendo de uma maneira que nos deixa extasiados.

A imagem do homem... com encantos de defeitos. Tão especial que foi "príncipe e sapo" até desfazer-se no tempo do tempo. Mas... deixando um rastro de amor a ser lembrado. Lembranças... arquivo que nos faz crescer e crescidos. Lindo o texto.. porque não tem pretensão de ser perfeito. Com certeza não será esquecido por nós... teus leitores. O texto da Cecilia que amei ler... porque amo a forma bonita que ela escreve. Beijos de Luz e Paz. Obrigada sempre... Donna Boris

Conceição Moura, Donna, poxa, obrigada mesmo! Para quem escreve, saber que atingiu o leitor, é uma sensação indescritível. E àqueles que não se identificaram, deixo aqui, também, meu profundo agradecimento.

Lindo, Cecilia. Um amor que jamais morrerá na alma da personagem. E que bela sacada o não encerrar da leitura. Foi humano, sensível, comovente...
Beijos,
Lohan.

Sem comentários!!! Lindo demais!! As cataratas alcançaram meus olhos!

Querida Cecília. A cada texto seu que leio, penso: Nesse ela se superou! Você falou de um ser humano que parece não existir mais. De um ser humano capaz de amar e ser amado. De um ser humano forte e poderoso, porém, humilde. De ser adulto com seu lado criança, mas duro o suficiente para encarar as durezas da vida. "...se perdesse a magia, ele perderia sua alma..." Utopia??? Com tanto amor e magia na criação de sua obra, Cecília, você conseguiu nos mostrar que o ser humano ainda não perdeu sua alma, que não somos utopia, que ainda somos capazes de amar e ser amados. Parabéns pelo maravilhoso e comovente texto. Brilhante presente para os leitores da Revista Samizadat. Patrícia Gontijo de Andrade

Lohan, obrigada pela leitura, meu caro. Bom receber um elogio seu. Marcia, agradeço a você duas vezes e você sabe porquê. Patrícia, querida, que bom saber que você leu e gostou. Imensamente grata pelos carinhosos comentários.

Li, reli... Ai... que amei e vivi ao ler, cada instante desse utópico amor, lindo, tocante...
sorvi cada palavra, aos goles de emoção... “Perdi o homem que amei no tempo e no silêncio”
ah, esses amores que nos tocam a alma, fazem folia de festa em nossa vida, fazem, por um tempo, colorido as paredes do nosso coração, mas também de dores e sofreres, de sonhos e desilusões... Se vão e deixam essa sensação de utopia, de "sei não"... mas a vida é uma história de amor onde não cabe viver sem poder dizer ao menos, que tive, por momentos... o homem que amei!
Ciça, parabéns pelo belíssimo texto, sensível, apaixonante!!
Bjos

Meraviglioso il racconto e il modo di scrivere. Fortunato quell’uomo avere incontrato una donna che sa amare in quel modo . La giovinezza che con l’amore un po’ morboso può regalare , l’essere completamente donati l’uno all’altra in una vita insieme, in cerca di quel piacere che sembrava dimenticato dall’età.
Tutto è sospeso in attesa che il tempo possa completare quell’amore che tutti ci auguriamo vecchiaia felice.

Cecília, cada vez mais você surpreende com sua sensibilidade e percepção da vida em seu desenvolvimento, com sonhos e desencantos. Apreciei a leitura, a beleza como retratou esse príncipe da mocidade. Parabéns, continue trazendo emoção e sabedoria em seus textos.....Cleube

Mais um texto profundo e tocante, com sentimentos permeados de poesia. E com a prosa elegante de sempre. Parabéns, Cecilia!

Ah.., esses amores que ficam no tempo e que, vez por outra, retornam com toda força. A-DO-REI, Cecília!
Marta Japiassú

Magnífico texto Cecilia Maria!!! que vontade de ler mais.....
Martha

Obrigada, amigos, Van, Edelson, Marha, Marta Jupiassú, Cleube, pelos carinhosos comentários.

Lindissima querida. es uma escritora eleita. aquela que diz tudo e tudo sabe. espero que continues assim com a tua doida e enloquecente maneira de alegrares o mundo e as almas. gostei tanto e fico esperando desde ja curiosamente do proximo pensamento.

Li...reli...e mais uma vez...e mais outra...e. Tão real que tive a sensação de que a história desse homem que amou, que tantas Marias, Martas, Amélias...amaram, você a escreveu pra mim, desculpe a presunção. Forte "O homem que amei tinha extremos loucos. Aproximava-me de Deus com a mesma facilidade com que me fazia conhecer o demônio", delicado "O homem que amei tinha sonhos lindos, desejos simples e gosto sofisticado. Existia um ponto de interrogação no semblante meigo e forte do homem que amei, tipo, por que complicar o que é simples?, sereno "O homem que amei tinha olhos que guardavam o mar em tarde de chuva"... envolvente...maravilhoso...deslumbrante. Obrigada por você existir Cecília. Parabéns. ( Graça Gonçalves )

um dia abri minha caixa de mensagens e lá tinha uma de um homem que amei e a vida e as circunstâncias da vida havia afastado. tomei um baita susto, ele me encontrara na internet e por instantes revivi tudo..sua bela crônica me levou a essa passagem de minha vida...bjo

Lembrei de Rubem Alves, ao nos advertir para não voltarmos mais aos antigos locais que nos maravilhavam, pois eles não estão mais lá.

Seus escritos são sempre repletos de vida, a poesia real, Cecília Maria, sempre dando um toque além do que esperávamos.

Parabéns!

E eu estou aqui, matutando, matutando, procurando saber quem foi que teceu esse comentário tão lindo. Seja você quem for, meu muitíssimo obrigada.

"O homem que amei tinha olhos que guardavam o mar em tarde de chuva..." Lindo texto, amiga. :) Parabens.

Joaquim Antonio, que bom você ter lindo. Seu comentário me envaidece. Graça, você é linda! Edweine, sua leitura carinhosa me fez feliz. Lazara, que riqueza ter conhecido você, seu elogio me levou para as nuvens. Muito, muito obrigada, amigos queridos.

Nossa, Cecilia, que lindo... Sincero e tocante. Quem nunca teve um amor assim, e de repente o descobre utópico e inventado? Trilhei cada passo do seu texto com a ingenuidade do amor juvenil e a maturidade do desamor maduro. Lindo!

Puxa, Tatiana, obrigada, querida. Um elogio seu vale por muitos. Feliz em saber que você leu e apreciou. Beijos!

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