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sexta-feira, 18 de outubro de 2013

FÁBRICA DE SONHOS (A propaganda é a alma do negócio)

Otávio Martins

Cada sonho! Claro que era o Carretinha. “Os olhos são cruéis”, disse certa vez o educador e escritor brasileiro Rubem Alves. Os olhos do Carretinha não os são. Do jeito que o Carretinha apareceu no meu sonho, acho estranho; eu mesmo, estranho, dono de um circo às vésperas de sua estréia. Ele, como vendedor de material de propaganda, exclusivamente, para circos. Aquele olhar faiscante, incisivo. Nunca escancara o seu sorriso, talvez por medo de perder a embocadura. Conheci o Carreta tocando flauta doce. Agora, parece, é só transversal.
   Custei a entender foram os cartazes, os quais estavam acomodados na extensão de um caibro de madeira, dobradinhos; ao modo dos vendedores de frutas. Já prontos; vários.
   O “vendedor” explicava, detalhadamente, ao que se destinavam cada um deles. Cartaz pra tudo que era ocasião. Sem compreender direito, argumentei e, a seguir, fui fazendo-lhe algumas perguntas tipo o circo nem estreou, como que eu iria aproveitar aqueles cartazes que ele oferecia já impressos?
   - Olha, no mundo do circo existem coisas que são definitivas e, mais, ainda, obrigatórias.
   Fui escolhendo alguns e logo já avisando: Ainda nem tenho dinheiro para pagá-los... Não se preocupe, interrompeu-me o vendedor (pra mim, o Carretinha), depois a gente acerta. Sinceramente, deu-me a impressão que ele nem se importava com o resultado financeiro; queria, sim, pareceu-me, me convencer da necessidade de que eu usasse os seus cartazes ou que seguisse os seus conselhos. Nada mais.
   Na noite da estreia, dez, somente dez pessoas na plateia. Fui direto ao assunto, precisava desabafar, mais, reclamar. Sua resposta veio de pronto:
   - Você tem ideia, de quem sejam aquelas pessoas do seu público desta noite? Seu César e a sua filha, a Maria Antonieta, já viu a carrocinha de pipocas deles? É linda! A perfeição, delicadeza e destreza com que a Maria Antonieta trata e ensaca as pipocas, só vendo, é de se tirar o chapéu. O seu César é tido como o maior pipoqueiro de todos os circos. São aqueles toques mágicos da Maria Antonieta que deixam as pessoas com água na boca. Mesmo sem querer, a gente consome um saquinho pequeno, nem que seja só pra provar. As pipocas saltam, dançam, quase voam à frente dos fregueses. As pipoqueiras do seu César são incríveis!
   Continuava o meu interlocutor: A dona Lindalva é uma artesã de mão cheia. Os colares, embora simples, tipo havaianos e aqueles chapeuzinhos de papelão, no formato de cone, todos se sentem importantes quando os estão usando. E, olhe, ela é uma artista. Você reparou como ela assistia entusiasmada ao show do seu elenco? Sabe muito bem que o espetáculo do seu circo é ótimo. O que será para ela, também. Os reco-recos são o Tonico, seu marido, quem cria e os confecciona. Sujeito habilidoso em trabalhos manuais; principalmente em madeira. Aí estão, dois objetos simples, mas que irão ajudar a dar vida aos espetáculos do seu circo; Seu Chico sabe como ninguém, organizar verdadeiros “exércitos” de baleiros. Seus integrantes sobem e descem as arquibancadas com especial desenvoltura. Vendem muito mais guloseimas que quaisquer outros. Doces, chocolate caseiro, chicletes, confeite, rapadurinhas, balas de goma coloridas. A maior parte daqueles doces é feita pela sua mulher, a prestigiada doceira aqui dessas bandas, a dona Lucinda;
   Você já deve ter visto, nalgum show por aí, aqueles isqueirinhos. Não é chama, não, são pequenas luzes de tudo quanto é cor, tornando os espetáculos possuídos pela magia da dança. Transformam o ambiente, desde as arquibancadas, num verdadeiro balé. Aquela cara de satisfeito do Dias será que é de graça?
   E eu, pensa que eu não entendo de circo? A sua equilibrista, aquela do arame armado no meio do picadeiro, como na música do João Bosco e Aldir Blanc, sabe, perfeitamente, que o show tem que continuar. Impecável!;
   Os palhaços, além de muito engraçados, bolaram uns números completamente novos nessa modalidade. Ainda, por cima, com música e dança. Envolventes. As crianças – e os adultos, também – irão adorar;
   O maestro, que perfeição! A sua competência e alegria, dá pra se notar, passa pra toda a banda. Por isso é que dá vontade de dançar. E, cada vez estará melhor, mais afinada e mais entrosada. Além do que a música é infinita. Não há como mensurá-la;
   E o estalar do chicote da domadora, é único. Só ela sabe fazer aquilo. Até os animais mais ferozes se tornam calmos, mansos e dóceis. Viu aquela senhora de preto, sozinha, de vestido longo? Ela confecciona e vende pequenos chicotes e, normalmente, imitando os dos domadores. Estava, visivelmente, encantada. Certamente vislumbra bons negócios. Assim como a domadora, aquela senhora procura fazer com que o chicote valha ou sirva mais pelo seu estalar, do que se poderia imaginar no papel e ação de um elemento corretivo;
   Eles é que dirão por aí que o seu circo é ótimo. O Maior Espetáculo da Terra, talvez vão dizer. Além desse boca a boca, meus cartazes falarão por mim. Então, você será reconhecido como um importante dono de circo. É só esperar e confiar no que estou lhe dizendo. E não precisa agradecer, não, o mérito é todo seu.
   E nem citou os malabaristas, os acrobatas e trapezistas. Tampouco o Globo da Morte do circo dos meus sonhos.
   Tudo invencionice, ou mentira, como diria o poeta Manoel de Barros. O meu circo foi um desastre. Não tinha pipoqueiro algum. A minha imaginação foi quem transformou aquela mulher que fazia ponto nas portas dos circos que passaram por ali, numa artesã de mão cheia. A domadora e seu chicote, ou o estalar do seu chicote, nunca existiram; nenhum animal ou fera a ser domada. No Globo da Morte, as motos não decolaram, ficaram naquele vai e não vai nervoso da partida. Quase aconteceu um incêndio na noite de estréia do meu circo. Sabem o que os palhaços fizeram? Sorriram. Ficaram, simplesmente, alegres. Que banda, que nada. Som mecânico foi o que eu pude conseguir para animar a estreia do elenco.
   Até a imagem que eu criara, a partir de uma estrofe, parece que o nome do compositor é Batatinha, lá da Bahia, que o meu primo, Octacílio Amaral – violonista – cantarola, às vezes: “todo mundo vai ao circo/menos eu, menos eu/como pagar ingresso/se eu não tenho nada/fico de fora, escutando a gargalhada...”, perdeu o seu sentido. Pelo menos depois daquela estréia.
   O sonho, a meu ver, é quase como uma grande mentira, a qual desejamos transformá-la em realidade.
   Foi a última vez que encontrei com o Carreta.

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