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segunda-feira, 7 de maio de 2012

'Cansaço', em resenha



Afuleimação e vendeta, a redescoberta 
do idioma em “Cansaço, a longa estação”

(por Ramon Barbosa Franco)

Caim matou Abel, nos conta a Bíblia logo em Gênesis. Ao contrário do Antigo e Novo Testamento, “Cansaço, a longa estação”, lançado em março pela Boitempo Editorial é compacto e enxuto, bem aos moldes exigidos por boa parte dos leitores contemporâneos. Em suas 96 páginas, a narrativa concisa consegue transmitir intensidade semelhante ao conflito fatal dos filhos de Adão e Eva. O leitor é induzido por Luiz Bernardo Pericás a entrar no que ele traduz como vendeta, termo explicado no glossário que segue ao final do livro: espírito de rivalidade e vingança entre famílias ou clãs concorrentes, o qual desencadeia assassinatos e atos de vingança mútua. Embora não sejam irmãos de sangue e sim rivais de ‘clãs’ distintos, “Cansaço” tem o seu Caim e tem o seu Abel: basta o leitor escolher quem entre Punaré e Baraúna está na condição de vítima ou de carrasco. E em qual momento do livro um merece a pureza de Adão e o outro a índole torpe de Caim. Antecipo: o embate entre os dois é bem maior do que uma simples briga de punhal (ou de ‘cuchillo’ nos duelos de ‘compadritos’ contados por Jorge Luís Borges para reafirmação de virilidade) e tem capacidade de nos levar para ‘Corpo Fechado’, de ‘Sagarana’ do Guimarães Rosa, por sua atmosfera sertanista e pela presença do místico Simão. O velho bruxo faz às vezes de um mago Merlin sertanejo. Neste contar, Pericás, que é, sem sombra de dúvidas, um dos mais completos e talentosos escritores da literatura brasileira contemporânea, mostra para o leitor a redescoberta da língua portuguesa, ressuscitando substantivos, adjetivos e verbos que, um dia, tiveram sua funcionalidade. Hoje, ao aparecem no texto, estes termos carecem de explicações. Está aí o motivo do glossário, que surge no final da obra, mas pode ser consultado nos intervalos de leitura. Detalhamento enciclopédico e esclarecedor, na minha concepção, está associado ao fato de Pericás ser um profícuo pesquisador. Ao concentrar particularidade do pensar e do falar da faixa geográfica e do núcleo temporal que abarcam “Cansaço” (um sertão rústico, seco, margeando as últimas décadas do 1800), o autor convence e alimenta a história mantendo dispositivos narrativos quase que idênticos à famosa frase de Karl Marx em “O 18 de brumário de Luís Bonaparte”. Marx ressaltou, logo no capítulo I, que fatos e personagens de grande importância na história se repetem. Na sua primeira vez como tragédia, e, na segunda parte, como farsa. “Cansaço” está dividido em duas partes e a descrição do ambiente é feita com tanta maestria, numa imersão tamanha, que é capaz de provocar sede ou suor em quem está lendo. Aliás, o livro poderia ser chamado de “Calor”, dado ao sol, mas também, e principalmente, à personagem Cicica. Em síntese, a narrativa de Pericás é uma afuleimação. Para deixar ao leitor a angústia da curiosidade ou o gosto da busca pela ampliação de vocabulário, não revelo o significado de afuleimação. No glossário tem, é facilzinho de assimilar. Fica a cargo do leitor decidir em qual ponto a trama é tragédia, se transforma ou não em uma farsa (aqui empregado no sentido de gênero teatral que mistura comédia e crítica social), e em qual circunstância Punaré e Baraúna encarnam, cada qual em seu tempo e jeito, o homicida Caim e a vítima fatal Abel. Pericás nos encerra numa estação: a dos grandes autores brasileiros. Por lá já estão Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Osório Alves de Castro e Ariano Suassuna.

Ramon Barbosa Franco, 32 anos, é jornalista e escritor, autor de ‘Contos do Japim’ (Carlini & Caniato, 2010),ramonimprensa@gmail.com

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