Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

sábado, 26 de maio de 2012

Caca de cão


Sentada no banco do jardim, chorava.
As lágrimas caiam em fio sem soluços. Nada as impedia, as mãos enclavinhadas no colo na posição centenária de estoicismo.

A postura era rígida mas discreta: nenhum dos passantes lhe dirigiu um segundo olhar. 
A silhueta madura não atraía os jovens e o drama passava despercebido aos outros, aos solidários como aos abutres; talvez fosse essa a razão pela qual a postura se lhe tinha tornado familiar, uma defesa contra intromissões inconsequentes.

Os olhos abertos perscrutavam sem ver a linha do horizonte, uma coisa feia de prédios velhos e sujos. Não a via, os olhos só viam o que se tinha perdido, sem esperança e sem remédio. Sentia-se velha e trôpega, no dia do seu meio centenário
O seu tempo fora julgado sem préstimo, toda uma maneira de proceder, um conhecimento e uma experiência, toda uma maneira de estar, todas as escolhas da sua vida, tudo ajuizado sem utilidade. Como caca de cão.

Quando não há capacidade para todos no bote, lança-se ao mar os que pesam mais do que o que valem na travessia. Tinha sido lançada ao mar e a pena por si própria era maior do que alguma vez pensara possível.

O pombo aproximou-se, o olho vermelho a avaliar a possibilidade de haver pão naquela figura pesada. Voltou a cabeça para ver com o outro olho, igualmente vermelho de saúde; mas não havia dúvida que dali nada viria, era demasiado agourenta, demasiado escura, a figura.

As lágrimas caiam em fio sem soluços. Nem viu o pombo que, também ele, a ajuizara sem valor.

Share


Mac
De biografia, só posso dizer que tenho mais de 50 anos e nunca publiquei nada... Mas gostaria de publicar, receber opiniões a coisas que me ralam...



todo dia 26


3 comentários:

obrigada pela partilha, Mac
gostei muito

Nossa, que coisa pesada e perfeita! "Quando não há capacidade para todos no bote, lança-se ao mar os que pesam mais do que o que valem na travessia". Eu,aos 55, tenho aprendido a ficar em terra firme,para me resguardar. Mas sempre me vem à mente uma frase antiga, que eu recebi das mãos da minha mãe: "Os barcos estão mais seguros no porto. Mas eles não foram feitos para permanecer no cais". Lindo texto!

Que retrato "tramado" de como um desempregado de meia idade (os tais demasiado jovens para a reforma e demasiado velhos para arranjarem emprego).
Repararam que o pombo nem sequer lhe caga em cima, certo?...

Postar um comentário