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sexta-feira, 22 de março de 2024

Animal por Animal

 


Não há palavra ou expressão que, por si só, conceitue ou determine as unidades elementares de nossa existência, ou qualifique, com êxito, o ser humano – e tampouco todos os vocábulos e todas as sintaxes fracassariam em nos representar. O próprio indivíduo, ao descrever-se em um ou dois atributos, padece, pena, sofre e hesita – à exceção de Jaime II, que se definia como coaching quântico-motivacional, digital influencer e personal trainer.

Oficial da reserva do exército, atlético e pretenso inocente, por sua clientela era admirado feito um Apolo de Belvedere cujas tatuagens – a mais simbólica delas, a frase Missão Dada É Missão Cumprida, pintada no antebraço em escrita cursiva – retratavam não só os ideais de sua geração, mas uma história alusiva a culturas masculinas e aos derradeiros guerreiros. Assim acreditava-se, um soldado ou lutador, e assim forjava-se para, em contrapartida, manifestar os defeitos característicos aos homens de sua classe: o orgulho colossal, a severidade, o ego infantil.

Nenhuma das limitações assomava como trágica à Michele quando o casal de namorados decidiu, numa ação impulsiva, compor vidas e trançar destinos após seis meses de relacionamento. Jaime mudou-se para a casa de Michele e consigo levou, somente, Fritz, o dogue alemão, e seus halteres. Um homem precisa apenas de halteres para sobreviver – era um dos mantras espirituosos de Jaime e o mais proferido nos seus seminários.

Ao mutualmente habituarem-se às suas manias e máculas, Michele julgou-o intransigente e autoritário, ou machista, e Jaime enervou-se com perfeccionismo e a teimosia que ela manifestava ao ser contrariada. Michele era sansei, a terceira geração de imigrantes japoneses, e era professora de educação infantil e vegetariana, e apesar dos trinta anos paramentava os ombros com um xale de crochê. Vangloriava-se de seus parâmetros morais e julgamentos minuciosos, e a si confiava a redenção do mundo e da espécie humana. Nas apresentações pessoais declarava-se, sorridente, como virginiana. Era Michele, enfim, abominável como Jaime. Este, com o suceder das semanas, e devido ao seu instinto de caçador, identificou nela uma instabilidade nervosa ou taciturnidade acachapante – e tais comportamentos ele inferiu como naturais à infância da união. Mas ao regressar de viagem em certa circunstância, e ao estacionar o automóvel na garagem e adentrar o lar, flagrou-a com as pupilas dilatadas, ofegante, a desprender um calor estranho à pele. Jaime afastou o dogue Fritz, abraçou-a e beijou-a, e antes de conversarem sucumbiram ao sangue. Comprometido aos braços da paixão após o amor de crepúsculo, entre a vigília e o território dos sonhos recordou-se de Michele e sua condição, dos olhos condensados e malditos, o desespero– e concluiu: ela consumira entorpecentes.

Incapaz de confrontá-la – pois apesar de orador e coach suas palavras eram apropriadas a encorajamentos e exortações, não aos meandros da emoção e dos sentimentos –, precisou, além de constatar em Michele a recorrência de uma disposição soturna, flagrá-la novamente em um estado alterado de consciência para agir – justo ele, cuja vida principiava-se no verbo.

Na manhã de um sábado Jaime levantou-se cedo, preparou café, salada de frutas, despertou-a com afagos e com a paciência dos subjugados e convidou-a para o desjejum. Enquanto ela fartava-se à mesa, ele admirava os traços de sua face, a expressão plácida e complacente, oposta à de seus ápices de melancolia, e ao término da refeição segurou as mãos da namorada, encarou-a e perguntou:

O que há, Michele?

Incontinente, os olhos dela soçobraram-se em lágrimas.

Qual narcótico a derrotou?

Michele, aos prantos, balbuciou:

É muito forte, amor. É uma sensação, e só. Me obriga a atos abomináveis. Me derruba e me alça aos céus, falou ela e mais não disse malgrado a carinhosa persistência do namorado. Orgulhoso com o primeiro dos numerosos, futuros embates inevitáveis a sua admissão de vício, Jaime congratulou-se. Autênticos guerreiros não escolhem batalhas, falou para si, de frente ao espelho. Então começou a, de semana em semana, sitiar e fustigar Michele, e apesar de sua insistência ela não confessava, permitia-se apenas as lágrimas.

Nós haveremos de vencer, bradava Jaime para Fritz, em vislumbres de Júlio César.

Numa segunda-feira de angústia e antes do almoço, e por entrever a namorada em seus pensamentos, abandonou a ordenação das palestras e a assunção de novos compromissos e rumou para casa. No caminho comprou um buquê de flores e bombons sem glúten e lactose. Como era de intenção surpreendê-la, estacionou o carro na rua, longe da garagem e das grades. Sempre assustava amigos e familiares, e sempre compensara suas diabruras. Com cautela abriu e fechou o portão, passou pela monstruosa casa do cachorro, por canteiros cultivados, abriu e fechou a porta de entrada. No hall, ruídos incomuns alarmaram-no. Era o arfar de exaustão e eram os gemidos contidos, ou dolorosos, e era a úmida consistência do ar, e ao julgar com pressa Jaime inferiu que a amada se aproveitava da solidão e da folga matinal para ceder-se aos entorpecentes e aos narcóticos.

James renunciou a propósitos anteriores e, presumindo-a no quarto de casal, correu, atravessou a sala, cortou o corredor e adentrou o recinto onde presenciou uma cena cuja sordidez não será retratada em pormenores: Michele, de gatinhas sobre a cama – mas sob o cachorrinho –, em pleno ato sexual.

Amor, gaguejou ele.

No umbral da porta, estupefato e petrificado, assistiu a namorada rolar para além de Fritz, o dogue alemão, e gritar:

Eu sou assim, Jaime, eu sou assim!

Confinado às esferas da desilusão, ele percorreu a lateral da cama e sentou-se no colchão. Dissipavam-se os marcos da realidade, as sensações e naturezas. Michele, deitada em posição fetal, chorava. Fritz, deitado em posição fetal, lambia os testículos. James II tremeu ao abrir a porta do armário e a primeira das gavetas. De entre as cuecas apanhou um revólver calibre trinta e oito, herança do pai. Malgrado sua resolução fosse a de com celeridade findar a sucessão de exigências conhecida por vida, e a ciência de seus sofrimentos, uma lágrima tocou a ponta do cano antes de ele efetuar um disparo quântico contra o céu da boca.

No velório de Jaime, ao lado do esquife, Michele, de óculos escuros, abraçava Fritz, o dogue alemão.


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Erik K. Weber
Gaúcho.






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