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sábado, 19 de fevereiro de 2022

Mãe de dois

 


Falam de desejos e dores, enquanto eu tenho menos de cinco minutos para resolver a minha vida. De que lado vou ficar, da morte ou da ressurreição? Não possuo a graça da dúvida ou da premonição. As situações estão postas e devo engoli-las sem mastigar. Está tudo muito confuso, não é? Nem o tempo para formar estas palavras me socorre. A minha verdadeira vontade é de abandonar tudo, mas não posso. Sou mãe de dois filhos pequenos ainda; sem pai e sem paz. Eles demandam todo o meu sangue – que já é insignificante para mim. Preciso supri-los da minha seiva, que é amarga e gasta. Eles lamentam pelos cantos; sofrem contidos, nem forças para espernear têm. São dois pobres coitados que vieram ao mundo pela insanidade dos pais. Vamos ao começo, então: conheci Augusto no ano de 2017, na Praia de Iracema. Ali, Augusto era aclamado como o “Mago da cannabis”. Ele fornecia suprimento para quase toda a região. Fiquei fascinada com o seu jeito livre, absoluto, articulado, e, como senti depois, carinhoso. Não havia discordâncias; falávamos como deuses. Eu morava na Barra do Ceará, do outro lado da cidade, e, para mim, era uma compulsão estar com o Mago. É tanto que endoidou a minha cabeça em questão de dias, chamando-me para morar com ele num vão mixuruca, na divisa da Rua Historiador Raimundo Girão com a Avenida da Abolição. Havia um ingrediente importante: ele era italiano, galante, sedutor. Tinha a elegância de dosar a voz, com o veludo correto para cada estação. O que ele me pedia que eu não fosse capaz de fazer, para mim era um tremendo sofrimento. Apenas com duas semanas juntos, ele se mandou e passou três dias fora. Foi o primeiro baque. O Mago evaporou. Fiquei maluca, perguntando a um e a outro. Uma senhora muito viva, nativa da praia, disse que o dito cujo tinha mania de sumir quando as coisas apertavam. Entendi, depois, que o aperto tinha a ver com aflição de abstinência da cocaína e com cheiro de polícia. Mago apareceu de repente, sinuoso, como se não houvesse nada, me tratando com o maior amor do mundo. Safo e inteligente, me fez esquecer o absurdo em um minuto. Eu já era outra mulher, dobrada pelos instintos. O sexo era transcendental; dançávamos segundo o uivo dos ventos. Gemíamos, como gatos, facilmente uma noite inteira, varando o dia. Aprendi a me pertencer com o Mago. Numa altura, grávida do primeiro filho, me sentindo dona de mim, decidi que mandaria no meu corpo e, por isso, fumaria um beck atrás do outro; não me importava o que acontecesse. E pensava que aquilo seria bom para neutralizar as aflições – minhas e do bebê, que devia estar estressado com o aperto do meu corpo mínimo envolvido no seu –; Mago também me convencia disso. Fui ao hospital com queda de pressão e dores na região abdominal. A médica perguntou se eu fazia uso de drogas e não menti. Ela disse que, se eu continuasse assim, ou perderia meu filho, ou ele nasceria com sequelas. “Mesmo a maconha?”. “Sim, mesmo a maconha é proibida. Não é porque veneno de cobra é natural que não vai fazer mal”. Não confiei muito no alerta da médica alvoroçada; fumava quando me convinha, pouco. Mago contou que a “barra tava pesada”. Disse que deveríamos morar numa praia, por um tempo, até as coisas esfriarem. Fomos a um recanto isolado, praia de Moitas, lugar ainda intocado, na base da perfeição. Quando Cícero nasceu, o pai ficou besta e domado, parecia outro. Vivíamos para o menino. Até que um dia, sem mais nem menos, Augusto escapuliu de novo. Voltou com uma semana. Já não havia comida para mim e, por consequência, para o pequeno. Falou que precisava tratar de negócios com o Fuego, um tipo argentino que encontrei de passagem em Fortaleza. Fuego era empresário do ramo da trambicagem. Fazia negócio com tudo; até com a mãe, se duvidar. De fato, Mago voltou com uns trocados que nos abasteceram por meses. Descobri que estava grávida. O chão se abriu e fui tragada. Não era possível dar conta de um, quanto mais dois. Felizmente, Mago arranjou um emprego em um restaurante. Com a lábia solta, encantava os clientes e, por isso, foi ficando. Francisco nasceu antes do tempo. O hospital mais próximo era de Icaraizinho, e dava para ver que não tinha estrutura e equipe. A sorte foi que Francisco estava na posição e veio num parto natural – depois de seis a sete horas de trabalho. A terceira fuga do Mago se deu quando o menor tinha dois meses. Antes de ir, Mago deixou a casa repleta de comida, e dessa vez avisou que voltaria em dois ou três dias. Demorou uma semana, duas, e nada. Saí com os dois pelas redondezas. Perguntei sobre o paradeiro no restaurante em que ele trabalhou. “Se a senhora não sabe, imagine a gente!”, respondeu o gerente aborrecido, dizendo que o avisasse, quando o encontrasse, que o “bonito” estava demitido. Eu sentia uma gastura e um aperto no coração. Fui a Fortaleza na boleia do caminhão de um conhecido de um conhecido. Tive ainda de pagar sessenta reais de gasolina – fiquei com trinta para as necessidades. Abandonei tudo em Moitas; não esperava voltar tão cedo. Quando entrei na cidade grande, o medo me paralisou. As crianças choravam porque sabiam do meu sofrimento. Dormimos nas ruas por seis dias, até topar com um maluco que era amigo do Mago e que trabalhava no mesmo ramo. Ele não teve pena: “Mago morreu, senhora… Não vi o corpo, mas dizem que ele devia muito e o acerto com os bichões foi com a vida dele. Tá todo mundo com medo aqui. É melhor a senhora se mandar”. Não me mandei. Estou mendigando uma oportunidade e só recebo porta na cara – quando não me vêm com: “Vai trabalhar, vagabunda!”. A maior dor é ver a fome de meus filhos. Sobre o Mago, não quero mais saber. Não sei se a história que ouvi é verdadeira, ou se ele sumiu, ou se voltou para a sua terra. De um jeito ou de outro, pagará no inferno. A minha sentença é essa aqui.


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