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segunda-feira, 17 de maio de 2021

Secura - conto de Flávia Helena

 






    Chorou tanto quando enterrou o marido, que parou de menstruar. Tinha vinte e um anos. 

    No início, pensou que estava grávida, e até chegou a sorrir. Se fosse menino, era a esperança de um dia sentir de novo aqueles braços vibrantes, de veias saltadas. E também o cabelo, duro e crespo. 

    Mas logo notou que a barriga, que crescia, não se tornava rija feito aquelas que guardam bebês. Ao contrário. Balançava molengamente, como se, à semelhança de um saco plástico, abrigasse todos os fluidos que ela não mais conseguia expelir. Para acabar com a dúvida, a mãe levou a filha ao médico da família. E assim foi por água abaixo qualquer esperança de que uma partezinha do homem que amava pudesse voltar ao mundo. Nesse dia, ela deixou também de falar. 

    Havia razão para tanto sofrimento. Constâncio tinha sido seu único amor. Daqueles vigorosos e intensos. Mas rápidos. Durou seis meses, que é o tempo exato para que os amores permaneçam para sempre perfeitos. Conheceram-se quando ele chegou à cidade para trabalhar na Companhia de Minérios. Foi numa missa que se viram pela primeira vez. O olhar daquele homem entrou-lhe pelos poros, como se hidratasse pele, útero e coração. 

    Depois de um mês estavam casados. Nesses lugares, achar um sujeito bem disposto e que queira se comprometer é como encontrar uma pepita de ouro. Quando o par se ama, então, é como topar com uma pedra de diamante. 

    Viveram felizes. Muito. Até que a mina que ele explorava desmoronou e Constâncio também se desfez em mil pedaços. Foi velado em caixão lacrado. 

    A mãe dizia que, apesar de tudo, a filha devia reagir. Quando a gente fica viúva cedo assim, deve logo arrumar alguém, se ajeitar depressa, que é a única coisa a se fazer nesse fim de mundo. Mas quem vai querer uma mulher que, além de seca, é barriguda? E ainda por cima não fala? 

    Estava errada. A moça era muito bonita, mesmo seca e carregando aquela barriga mole. Não chegou a passar dois anos sozinha. Ajeitou-se quando veio uma nova leva de homens para trabalhar na mineração. Foi salva por Firmino. Trinta anos mais 

    No dia do casamento, ela voltou a falar. E, apesar do vigor do marido, a secura permaneceu. O que de água havia nela, ficava toda guardada no ventre. 

    Até que, numa manhã, acordou com a barriga diferente. Dura. Como se fosse dar à luz. E pontuda também. Mas não se preocupou, pois sabia que não estava grávida. 

    À noite, quando o marido lhe chamou, fez como sempre, apesar do desconforto. Abriu as pernas. E sentiu por dentro a aspereza da falta de amor. 

    Só que naquele dia, as coisas foram diferentes. Quando Firmino começou a se mexer, sentiu que algo lhe brotava do ventre e saía pelo sexo. Escorreu quente pelo lençol, molhando-lhe as costas e os cabelos. Conforme a cama foi se avermelhando, sentiu o prazer que não experimentava desde os tempos do primeiro marido. 

    Era Constâncio de volta. 

    Sangrou por três semanas. E alegou sentir-se cansada por voltar a menstruar depois de tanto tempo. Sob o pretexto de que precisava fazer repouso e de que poderia ficar anêmica, trancou-se no quarto, sem falar com ninguém, e guardou cada gota que saiu de dentro dela. No começo, era mesmo sangue. Mas depois, não. Passou a eliminar um líquido viscoso e dourado, que cheirava a jasmim. 

    Armazenou tudo em vidros que esconde no fundo de um grande armário. Todos os dias, ao preparar seu banho, mistura à água uma colher de chá da substância milagrosa. Às vezes, quando a vontade é muita, usa o líquido concentrado. Ontem mesmo, lambuzou-se, passando pelo corpo inteiro. Depois riu. O dia todo. 

    No mais, economiza. Quer usá-lo até o fim de seus dias. 





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Rafael F. Carvalho
Autor do livro A Estante Deslocada, é paulistano, nascido em 27 de Fevereiro de 1978. Foi publicado em antologias de novos escritores e em jornais universitários, e é formado em Letras pela Universidade de São Paulo.


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