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terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

PAUSA PARA BALANÇO

 



 

Conheci uma pessoa de outro tempo. Ou de outro mundo. Como qualquer outra, concebida não sei se por descuido ou de maneira programada, e que chegou ao mundo em casa, pelas mãos de uma parteira. A mesma parteira que pegara seus irmãos, seus primos, e todas as crianças que por ali chegaram naquelas últimas décadas.

Cresceu, teimosamente, numa época onde não existiam vacinas, onde a pólio corria solta. Não havia família que não contabilizasse o infortúnio da morte de uma ou mais crianças nos primeiros anos de vida. Se não pelo sarampo, pela pólio, pela tosse comprida, elas sucumbiam por pequenas infecções que, por falta da penicilina ali na vila, se alastravam pelo corpo. E, impiedosamente, morriam...

Pessoa astuta, sem sossego, sem parada com as pernas e com a cabeça, vivendo num lugar aonde a água chegava por braços que giravam os sarilhos das velhas cisternas, aonde a luz chegou como resultado da engenhoca de imensos geradores movidos a óleo-diesel, e que funcionavam com horário marcado. Isso mesmo! A iluminação era oferecida aos moradores a partir das seis horas da tarde, e era interrompida pontualmente às nove horas da noite. Durante três horas, era como se o dia se prolongasse, mas, pontualmente às nove horas, impreterivelmente, tudo virava breu...

E, para os pequenos, se o breu os pegasse na rua, era hora de tirarem os chinelos, e, com um em cada mão, desatarem numa carreira desenfreada pelas ruas de terra e pedregulhos até que ganhassem suas casas.

O escuro era temerário, a imaginação ficava solta e buscava, infalivelmente, o medo.

E assim, nessa realidade incrivelmente simples, aos cinco anos de idade, na avidez de descobrir o mundo, além do compromisso das brincadeiras de todos os dias, da largueza, da liberdade incondicional onde não havia descanso nem feriado, realizava-se assistindo às aulas do curso de adultos que funcionava num salão a dois quarteirões de sua casa.

Diariamente, as aulas começavam às sete horas da noite e terminavam às nove, razão pela qual sempre estava a correr pelo breu com os chinelos nas mãos...

Encantava-se com aqueles homens e mulheres de modos simples, de trajes humildes e puídos, rostos cansados, peles maltratadas pelo sol excessivo de anos e anos a fio, mãos calosas e duras, mas que ali, instalados desajeitadamente naquelas velhas carteiras feitas para crianças, ali, naquela sala de aula, escondiam-se atrás do brilho dos olhos querentes por aprender. E a professora, paciente e terna, de carteira em carteira, segurava mão por mão, flexionava braço por braço, punho por punho, e com muito esforço ensinava cada um a fazer um círculo, um traço, um rabisco funcional. E, como num milagre, chegava à letra “a”, “e”, “i”... Tudo como se fosse mágica!

E nessa magia de todas as noites, como ajudante da professora sábia e generosa, apagava o quadro-negro, recolhia e distribuía os cadernos, varria a sala, recolhia o lixo, abria e fechava as janelas e porta nas noites de chuva e ventania. E prestava muita atenção a tudo o que era ensinado e falado. No final daquele ano, quando completou seis anos, estava alfabetizada. Lia mais facilmente do que escrevia. Mas, escrevia...

E, assim, o mundo se abriu...

Sabia ler, e agora poderia assistir até às sessões do Cine Santa Maria! Tudo ganhara novo encanto! Era capaz de ler todas as legendas dos filmes estrangeiros, se bem que muitas vezes algumas apagavam antes que conseguisse ler tudo. Na verdade, a leitura ainda estava um pouco lenta.    

Foi brilhante no curso primário, e menos, bem menos no ginasial. A mudança, de uma única professora, aquela que na sua cabeça funcionava como uma mãe adotiva, única, sábia, onipotente, para vários professores, cada um restrito a uma matéria, essa mudança demorou a ser digerida por ela, se é que foi... Um tremendo desconforto.

Da aritmética, estudada até então, passou para a matemática moderna. De repente, a ciência exata não se resumia apenas a somar, subtrair, multiplicar e dividir. Não bastava ter decorado a tabuada. Passou a ser: conjunto, intersecção... E isso não fazia sentido na sua cabeça. Depois vieram teoremas e teoremas... Para que aprenderia aquilo?!

E em toda a sua vida acadêmica, não se lembra de ter estudado física, química, e sabe que, por mais que tenha tentado, nunca entendeu a matemática. Nunca soube o que era logaritmo, álgebra, mecânica quântica, como se calculava a velocidade, a potência, a capacidade, o impacto... Não sabia nada de nada... E participava de tudo. Dos desfiles comemorativos, dos jogos, dos eventos religiosos, políticos, festivos... E andava... Como andava! Era feito serelepe. Conhecia cada palmo de chão da pequena vila. E sabia do costume de cada morador, de cada um dos amigos.

Quando não estava na escola, a programação era quase que sacramentada. Às duas horas da tarde pontualmente, durante os dias de semana, precisava estar na casa de Dona Nair para ouvir a novela do rádio. E tinha novela que se estendia por mais de um ano! E foi através do rádio que soube da morte de James Dean, de Jeff Chandler, da execução monstruosa de Caryl Chessman, da morte do presidente Kennedy, de Marilyn Monroe...

E, aos doze anos, conheceu a TV, aos treze, conheceu o telefone. Apaixonantes! Como a imagem, feito um cinema em caixa, chegava até às casas?! Como uma pessoa falava de outra cidade, distante, e podia ser ouvida através daquele aparelho preto que era encostado no ouvido, na orelha?! Era possível ouvir tudo como se a pessoa estivesse no cômodo ao lado!

E quando com quatorze anos, foi estudar em outra cidade, conheceu de perto o semáforo. Verdade! Até ali aprendera, através de desenhos, gravuras e filmes, as cores do semáforo, o que representavam: PARE - OLHE – PASSE. Mas ali estava diante de um, ao vivo, em cores. E naquela noite não dormiu direito. Ficou intrigada e matutando... Como é que o semáforo sabia que estava vindo carro do outro lado, e sinalizava para que o trânsito contrário parasse?! Levou tempo para perceber, isso sem perguntar a ninguém, que o semáforo NÃO SABIA que havia carro vindo do outro lado, que tudo era apenas uma questão de tempo cronometrado para um lado e para o outro, tudo fruto de um dispositivo que fazia parte da máquina, da engenhoca do semáforo.

E foi normalista...

E curtiu a MPB, a Jovem Guarda, o Tropicalismo, a Beatlemania...

E viu o homem chegar à lua...

E curtiu a Copa de 70...

E dançou muito...

E, aos dezoito anos, conheceu o mar. E se deslumbrou. E não acreditou.

Pela primeira vez via uma montanha, uma serra. Aqueles picos altos, que enxergava diante dos seus olhos, deixavam de ser a ilusão criada inicialmente por gravuras que a professora colocava diante da classe para que fosse feita uma descrição, ou para que se inventasse um texto, deixando a imaginação correr solta. A serra estava ali, diante dos olhos. As montanhas, com as quais sempre sonhara sem nunca ter visto antes, estavam ali. E se encantou...

E estudou, e se formou, e se casou, e teve filhos...

E feito formiguinha, trabalhou, trabalhou...

E como qualquer outra pessoa, sonhou, acreditou, amou, sorriu, chorou...

E aprendeu a dirigir aos trinta e dois anos...

E, aos quarenta e dois anos, viajou de avião...

E conheceu o computador, com ele teve que trabalhar. Que dureza!

E, aos quarenta e seis anos, foi avó. Talvez como um presente para suavizar e enternecer o coração abalado pelos atentados, pelas catástrofes, pelas tragédias do mundo moderno. Ninguém continua igual depois de tantos solavancos... Mas a doçura devia ser preservada..

E sobreviveu tentando resguardar alguns poucos sonhos. E lutou para não se deixar endurecer demais, para superar o medo, a angústia, a insegurança, a solidão. Como lutou, misericórdia!

E envelheceu...

E continua aqui. Se não com a mesma astúcia deixada pelo longo caminho, nem com a mesma avidez de aprender, mas ainda com a mesma disposição de cuidar dos seus amores, que são muitos e que foram se somando ao longo da vida. Só ficou mais apressada. O tempo ficou precioso demais para ela. A jornada adiante é infinitamente mais curta do que a já percorrida, e isso a angustia. Sempre pensa que há tanta coisa a ser feita! Esta pressa que sente está atrelada ao viver, e não a qualquer outra coisa. Morrer é inevitável, mas não desejável. E não há pressa alguma nessa fila. Ninguém quer passar à frente, não existe tumulto. Ninguém reclama por esperar. Existe apenas uma ordem desconhecida e silenciosa, e a fervorosa torcida para que tudo siga a sequência natural, sem inversão, sem sobressaltos... Os avós, os pais, ela, os filhos...

Conheci esta pessoa há muito tempo, é uma amizade que vem de longa data, foi uma convivência intensa. Desfrutei de suas virtudes, sofri com seus infinitos defeitos, tentei respeitá-la, mas, por muitas vezes, não consegui.

E confesso que, mesmo me esforçando muito, infelizmente nunca me apaixonei por ela. Muitos dirão: “que pena!”. Mas só eu sei o que ela me fez passar... Quanto aborrecimento, quanto medo, quanta solidão, quanta insegurança, quanta vergonha! Eu senti tudo isso na pele...

 

 

 

                                              Regina Ruth Rincon Caires

 

 

 

                                                                             

 

 

 

 

                                                              

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