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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

O que é o Amor

 



    Apesar de já se terem passado duas semanas o Sr. Elias não conseguia esquecer a conversa das netas que ouvira por acaso. Em vez de deixar a mente divagar ao acaso enquanto trabalhava na horta ou no jardim ou quando se sentava em frente à televisão ao fim do dia, sem lhe prestar grande atenção, diga-se de passagem, dava por si a remoer aquelas poucas frases a que na altura não dera grande importância. Era incrível como umas meras palavras lançadas por umas miúdas podiam ter um impacto tão grande. Tinha até a certeza de que as netas já nem se lembravam do que tinham dito.

Tudo acontecera num domingo igual a tantos outros em que filhos e netos vinham “à terra” para o tradicional almoço dominical. Os seis filhos revezavam-se na visita aos pais idosos e calhara a vez ao filho mais novo, o João, divorciado tal como a restante tribo, mas que fazia questão de trazer sempre as duas filhas para que não perdessem o contacto com os avós. Depois do almoço, demasiado pesado para um quente mês de julho mas ninguém convencia Maria a mudar de hábitos, o filho ficara na sala à conversa com a mãe, a quem fora sempre muito chegado, enquanto as netas iam para a varanda das traseiras com os indispensáveis telemóveis e ele se metia na cozinha a tentar arranjar a banca que subitamente entupira.

Com o calor acrescido de várias horas de fogão e forno ligados o ambiente escaldava e decidira abrir também a pequena janela lateral que dava para a varanda e que raramente abriam. Enquanto se dedicava ao trabalho, bem mais complicado do que pensara inicialmente, ouvia vagamente a voz das netas que deviam estar sentadas nas cadeiras de ferro um tanto enferrujadas que ali colocara há muitos anos com a vaga intenção de as usar para passar uns momentos entre o fim do trabalho e o jantar ou até depois deste, se a noite estivesse boa. Mas pouco uso tinham tido e com os anos a pesarem deixara até de as pintar periodicamente.

Atento ao que fazia, pouca atenção prestava ao que as netas diziam, até porque duvidava que falassem de algo que lhe pudesse interessar. Descobrira há muito que netos e netas tinham gostos e interesses que nada lhe diziam e embora gostasse de os ver, quem não gostaria, pouco convívio tinham. Tendo começado a trabalhar na terra muito novo pouco estudara, o que aprendera dava para ler algumas coisitas no jornal quando calhava ter um à mão e pouco mais. E o cultivo da terra nada dizia aos netos e os animais que criava ainda menos, passadas as primeiras tentativas de os tratarem como animais de estimação perdiam o interesse.

Mas quem sabe, a vida dá muitas voltas e podia muito bem acontecer que um dia um ou mais deles redescobrissem os prazeres de trabalhar a terra, como acontecera com a neta mais nova do seu vizinho, o Manel, que tendo perdido o emprego na capital por falência da empresa onde trabalhava se viera refugiar na aldeia do avô e agora não queria outra coisa, introduzira novas culturas de que nunca tinham sequer ouvido falar, restaurara a casa para acolher hóspedes e ganhava até mais do que antes, segundo dizia, com a vantagem acrescida de ser mais ativa fisicamente.

Não estava pois a ouvir conscientemente as netas, chegavam-lhe apenas algumas frases dispersas que pouco ou nada lhe diziam. Mas às tantas, enquanto esperava que a cola que aplicara secasse, aproximou-se da janelita numa tentativa de se refrescar um pouco e aí, sim, ouvi-as claramente.

Como previra, falavam de pessoas que desconhecia, talvez colegas ou amigas ou até cantores ou atores, com esta nova geração nunca se sabia, agiam como se os conhecessem pessoalmente à força de tanto lerem sobre eles. Só sabia que falavam da grande paixão entre um Brad e uma Angie e de como gostariam de vir a ter algo assim, enfim, uma conversa que na sua opinião não era exatamente própria de miúdas daquela idade, com 10 e 11 anos deviam era estar a brincar, a correr, a aproveitar o facto de terem ali tanto espaço para se mexerem à vontade. Mas ninguém lhe pedira a opinião e sabia bem que se a desse seria recebida com um encolher de ombros e um comentário tipo “os tempos agora são outros”.

Estava prestes a voltar à sua tarefa quando ouviu a neta mais nova, a Sofia, dizer à irmã, a Lia, que era a mais espevitada das duas:

— Porque é que achas que os avós ainda estão juntos? Não achas que se não se amam deviam ter ido cada um à sua vida, como os nossos pais?

— Mas porque é que achas que não se amam?

— Algumas vez os ouviste dizerem “amo-te”? Ou até beijarem-se como deve ser?

— Pois, nem nunca os vi estarem de mãos dadas ou isso.

A conversa deve ter continuado, mas para o Sr. Elias arranjar a banca era bem mais importante, a sua Maria ia precisar dela nessa noite para lavar a louça do jantar, nunca fora mulher de deixar a cozinha por arrumar, se não a pudesse usar iria certamente buscar água ao quarto de banho para encher um alguidar e depois da trabalheira com o almoço queria evitar que se cansasse desse modo. Por isso abdicara da sesta depois do almoço para vir à socapa fazer aquela reparação.

Mas nos dias seguintes deu consigo a remoer as palavras das netas. Nunca pensara no seu casamento em termos de “amor” nem lhe passara pela cabeça que a solidez de uma união estivesse em manifestações físicas em público.

Conhecera a mulher numa festa popular da vila mais próxima quando tinha quinze anos, achara-a bonitinha, mas a relação entre eles surgira aos poucos na feira semanal onde passara a ir vender o que a família ia cultivando ou criando e onde ela tinha uma banca mesmo ao lado da sua. Foram falando, descobriram que tinham ambos a mesma vontade de permanecer na terra e não de ir para a cidade como os respetivos irmãos e irmãs que assim que tinham idade suficiente partiam em busca de uma “vida melhor”. Nunca fora uma relação como as dos poucos filmes que vira, havia alguma atração, claro, mas havia, sobretudo, confiança e a vontade de percorrerem a vida juntos.

Foram poupando alguns tostões e acabaram por conseguir casar um pouco mais cedo do que antecipavam graças a um problema com o pai dele que o impediu de continuar a cultivar a terra, passando-a pois para o único filho que ali restava, o Sr. Elias.

Os filhos começaram a surgir quase logo, com as despesas e doenças usuais, aumentando as dificuldades de uma vida já de si laboriosa. Mas foram todos bem-vindos e se outros tivessem nascido também o teriam sido. E como os tempos tinham mudado, mandaram-nos estudar até onde quiseram ir, universidade incluída, apesar de saberem que isso implicaria partirem definitivamente da terra.

Casaram todos, tiveram filhos, divorciaram-se também todos, alguns voltaram até a casar ou a viver uma nova relação. E durante todo esse tempo o elemento constante nas suas vidas fora sempre a casa dos pais.

Quanto mais pensava no assunto mais confusão lhe fazia a opinião das netas. Sim, sabia bem graças à televisão e nas suas poucas idas à cidade para consultas médicas que o que se via agora eram casais agarradinhos em público, aos beijos assolapados, enfim, em cenas que, para ser sincero, o incomodavam um pouco, chamassem-lhe antiquado mas continuava a achar que certas coisas deviam ser guardadas para a intimidade. E mesmo aí, nunca se pusera naqueles propósitos com a sua Maria, não via razões para o fazer e duvidava seriamente que ela quisesse isso.

Pois, ouvia muito dizer as tais cenas eram amor verdadeiro, as netas pareciam ter a mesma opinião, mas a verdade é que os próprios filhos, tão “apaixonados” quando namoravam, começaram a ter quezílias cada vez mais intensas pouco de pois de casarem e acabaram por divorciar-se por, segundo lhe disseram na altura, terem descoberto que nada tinham em comum. Então o namoro não era para isso, para se conhecerem a fundo e verem se havia compatibilidade de gostos e ambições?

Mas, como dizia um dos netos, se não se evolui, morre-se. Por isso talvez não fosse má ideia tentar pôr um pouco mais do tal amor no seu casamento. Começar, talvez, com algo fácil, um simples “amo-te”.

Ensaiou a frase mais vezes do que um ator do D. Maria antes da estreia da sua primeira peça, planeou e descartou inúmeros cenários, enfim, andou de tal modo enfronhado que a Maria até lhe perguntou se estava a chocar alguma.

Chegou finalmente o grande momento, era agora ou nunca. Decidira fazê-lo ao fim da tarde, quando a mulher se sentava na sala a dar uns pontos enquanto via um concurso televisivo de que muito gostava. Esperou por um intervalo, sim, se o ia fazer mais valia não dividir “o palco” com o que se passava no ecrã.

Aproximou-se então dela e disse:

— Maria, eu... vou fazer um chá. Também queres?

Luísa Lopes
Photo by Gert Stockmans on Unsplash

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