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sábado, 19 de dezembro de 2020

Mas que deus(a)?


 

                                          

Aquela casca; aquela amálgama cinzenta, dita estéril, se misturava ao monturo quase na porta da entrada principal. E não expressavam mais que: “Assim, esse país não vai para frente…”; sem providências para alterar o status quo. A bem da verdade, para ser sincero, acredito que só eu me penalizava. E já não era moço, como tio Alencar relatava, para me impressionar com “trivialidades”. Além disso, fato que me colocava em choque com a minha condição privilegiada era ter de ouvir, da boca de Augusta – que pelo nome se achava pertencente à alta nobreza –, a vizinha de porta, as maiores reprovações a um sonho pretérito e inacabado de igualdade e de justiça social.

Bom, para começo de conversa, devo falar que morar na zona sul da capital tem a complicação entranhada de estar ilhado. E por que, ainda, resistia em morar aí? Sendo filho único de Maria de Alencar Sobreira, uma mulher digníssima, que fez tudo para aplacar as dores de meio mundo de gente, inclusive a minha, restou-me este apartamento de herança. Nada mais. A leitora pode dizer que sou ingrato, coisa do tipo; ou que poderia muito bem me desfazer desse engodo que chamo de apartamento. Poderia, sim. Mas, arraigado a tantas memórias, não seria um processo fácil, simples de se resolver; como se jogasse um troço descartável. Não se devem enterrar memórias despachando-as – enfim, pequeno e respeitoso, julgo desse modo.

Ano passado, quando me socorriam alguma lucidez e ânimo, expus o bendito à venda. O corretor me declarou, com ar suspeito, que as mobílias estavam muito velhas; que o mar não estava para peixe; e outras baboseiras mais. Ainda assim, insisti, com o intuito sôfrego de me desligar de algum engasgo do passado. Uma tarefa hercúlea para um mero mortal apaixonado. Se fosse inventar de ir para outro apartamento, não seria a mesma coisa; não comportaria as inúmeras caixas, portas, móveis, e todo um aparato que a ele estou irremediavelmente vinculado. Desisti, por impulso, da empreitada. Um amigo, o Joaquim – aliás, o único amigo –, na estrita significância da palavra, me confortou, pedindo que não fizesse isso; que, mais cedo ou mais tarde, o que estava manifesto em meu rosto assombrado com a mudança, poderia me arrepender.

 Permaneci alheio aos desconfortos que me cercavam. Falo propriamente dos vizinhos, e de uma parcela da família, que me enchia o saco para encontrar um novo rumo. Nesse novo rumo, incluía aprimorar a carreira; encontrar um emprego de “vergonha”, que louvasse o nome da família, e, claro, me separar do apartamento. O incômodo aí, talvez, era quedar numa velharia. O mesmo tio Alencar, para se ter noção da invasão que cometia em relação à minha vida, afirmava, categoricamente, que precisariam implodir esse prédio, porque “é uma tremenda duma sucata; um elefante branco; manco, ainda por cima, resistindo à modernidade. Basta!” – e o falava alternando grosserias e rezingas de um velho empolado em falsas insígnias.

Tio Alencar não admitia ser chamado de “seu fulano”. Nesse prédio, que não era o seu, advertira os empregados, porteiros e afins, para lhe chamarem de “doutor”, embora mal possuísse o título universitário. Mamãe, quando estava com raiva, confessava que o grandalhão, a sumidade em pessoa, havia conseguido concluir os estudos à base de muita “pesca”. Colava os exames dos colegas na cara dura. Todavia, deixemos isso para outra prosa, senão me estenderei muito ou fugirei do essencial.

O velho, repleto de sebo escorrendo pela cabeça despovoada, ainda estava mancomunado com a vizinha, posso crer. Ela, para me desarmar e me desarrumar, não cansava de ligar o som nas alturas, em pleno dia de semana, sabendo que estava em casa e que trabalhava, agora, em home office. Para não me perturbar, fui obrigado a comprar um tampão de ouvido, dos mais caros, e, com ele, não sobrevinha ruído. Mas, até que chegasse à minha casa, porque o encomendei de outro continente, tive de me contentar com tufos de algodão atochados nos ouvidos.

Augusta, não contente, arrumou um pequeno cachorrinho. Não tenho nada contra animais, exceto os humanos de sua estirpe. No entanto, ela adquiriu um escolhido a dedo, um pinscher, e não precisaria relatar o tormento de ter de ouvir, a cada meia hora, um estardalhaço quando alguém resolvia aportar no meu andar. O cachorro, logo de início, mesmo sendo mínimo, tinha uma caixa torácica das mais agudas, nunca vi… Se, por um acaso, se encontrasse com o cachorro poodle da neta da outra vizinha, então o barulho varava o dia e adentrava a noite.

Por mais desgastante que fosse, o martírio era, digamos, superável. Augusta não conseguia me atingir dessa maneira. Não obstante, a sua voz rouca de tanto fumar e o seu desdém às questões centrais, que dizem respeito à sociedade, como se solapasse qualquer diferença, notadamente humana, compactuando com as loucuras do presidente, agitando-se a cada pronunciamento fajuto, me levavam à loucura. Ela era o exemplo mais fiel do serumaninho médio brazileiro. Era, justamente por isso, que queria zarpar. Aí, no condomínio, havia uma grandiosidade incalculável de adoradores do satanás, mesmo se anunciando tementes a Deus. Mas que Deus? Na porta do apartamento da dita cuja, um adesivo declarando que a casa era abençoada e, mais embaixo, outro, dissonante para mim; desbotado, com o emblema da última eleição, com o novo número da besta, o dezessete.

***

O que me arrancava do eixo não eram esses pormenores, e, sim, o descaso com os moradores de rua, que, invariavelmente, habitavam, ou queriam habitar, os arredores do meu prédio. Volta e meia ouvia relatos de que soltavam bombinhas, objetos e, pasme, até sobravam agressões físicas, mesmo à luz do dia.

Naquela manhã de uma quinta-feira qualquer, da qual não aparentava haver nenhum sobressalto, a não ser a minha obrigação forçada de sair, de ter de me comunicar, se preciso, com algum morador e de realizar as compras no supermercado, saltou-me aos olhos um enigmático pacote. Estava bagunçado com os restos de tudo: eram caixas que armazenavam, dispersos, objetos descartados, comidas apodrecidas e dejetos de gente e de animal. Houve um leve reboliço, como uma carniça viva de vermes. Daí, irrompeu um som abafado, como se não conseguisse alcançar a atmosfera dos homens. Meti a mão, para o espanto de seu Luiz, o porteiro, que me olhava com nojo, com certeza comprovando a minha esquisitice. Remexi mais e, o assombro total, ali, acossada, uma linda criança me olhou no fundo dos olhos e, em seguida, soltou o berreiro. Arranjei-a numa ruma de jornais velhos que jaziam no local, para, em seguida, cobri-la com os melhores panos.

***

Depois de um longo processo judicial, o que acho bastante correto, para evitar o descarte humano, ou o tráfico de crianças, infelizmente corrente em nosso país, Letícia hoje ocupa todo o íntimo do meu ser; adorna a minha vida, com doçura e esperança. Chamam-me de louco, alegam que desonro a família, com os instintos mais espúrios. Não dou ouvidos. Letícia, ainda, apartou-me de tudo que me fazia mal; um anjo. Somos, eu e Letícia, a exuberante alma que declaro ser a minha permanente deusa.


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