Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

A visita do diabo

 



O dia amanheceu frio, mas luminoso. Nada fazia prever os acontecimentos dessa manhã.

Era terça feira, dia de o queijeiro passar a recolher a produção de queijo fresco da semana. Chegou na carroça puxada por um cavalo, seria perto das nove horas, e parou junto à porta da casa da queijaria, a uns cem metros da casa de habitação da quinta. Havia mais de uma hora que o casal e o filho tinham tomado a primeira refeição — o almoço —, provavelmente feijão frade cozido ou batatas com couves. O rapazito, em férias escolares de Natal, acompanhava o pai a observar o que fazia, mas sem largar o mais recente brinquedo que ele mesmo construíra: uma “espingarda”.

Dois ou três dias antes, na aldeia, assistira maravilhado à habilidade que um amigo aprendera nas aulas de Física do primeiro período: metia quatro ou cinco cabeças de fósforo num tubo inox (uma caixa de termómetro), aquecia a extremidade fechada com outro fósforo aceso e, passados instantes, o tubo disparava, como uma espingarda. A experiência foi uma inspiração para o rapaz de treze anos. Era evidente a mudança de nível que uma arma assim proporcionava. Podia facultar tiros tensos e certeiros. Não se podia comparar à fisga que até aí utilizava.

Logo que voltou ao campo, tratou de pedir a caixa do termómetro à mãe, amarrou-a a um pedaço de tábua, que afeiçoou em forma de coronha, e estava a arma pronta. Fez algumas experiências: aumentou a carga explosiva (tinha comprado várias caixas de fósforos de cera), juntou uns grãos de chumbo à frente das cabeças de fósforo, por fim, aplicou um bucha de cartão, para os grãos não caírem. Como os cartuchos do pai. Os tiros espalhavam um pouco o chumbo, mas os grãos ficavam bem cravados na casca dos troncos de mimosa que usava como alvo. Eram resultados muito prometedores. Tencionava experimentar em breve a nova arma na caça aos pássaros.

Dessa vez, o queijeiro não vinha sozinho; trazia o filho, assim disse. Só muitos anos mais tarde o jovem inventor suspeitou que aquele rapazola não era outro senão o diabo. Ou, pelo menos, o seu instrumento.

Apeou-se e dirigiu-se logo, seguro e sobranceiro, ao moço do campo. Que melhor surpresa podia esperar o habitualmente solitário miúdo rural? Orgulhoso, mostrou-lhe logo a "espingarda". Mas o visitante não parecia trazer tenção de brincar. Era entroncado e devia ter mais dois anos que ele, pelo menos. Dirigiu a curiosidade fiscalizadora para a cerca de troncos em que uma bezerra mugia a pedir a mãe.

Porque é que a bezerra está presa? — indagou, austero.

— Atão”, é a corte dela! — respondeu o miúdo, incapaz de explicar uma evidência.

Então, o visitante deu início à sequência fatal: com um resmungo indignado, destrancou a cancela, abriu-a e enxotou a vitela para fora. Solta, não se fez rogada e partiu em trote na direção que devia achar que estava a mãe. O jovem dono, incrédulo e atarantado, só emitia frágeis protestos:

— Atão”, soltaste a bezerra…

Mas o recém-chegado parecia ter um plano marcado. Mudou logo a conversa:

Isso dispara? — perguntou, interessado.

A atenção que o miúdo esperava para mostrar a sua "espingarda" foi o toque de mágica que o levou a esquecer o problema da vitela que ainda há pouco o desorientava.

Sim, sim. Queres ver?

Mostra lá! — concedeu o outro.

O rapazito correu para casa e rapidamente preparou o tubo, desta vez com uma carga de fósforos mais generosa, para fazer boa figura. Saiu com a "espingarda" carregada, fósforos e uma vela, e encaminhou o outro para trás da casa. Aí, acendeu a vela, encostou a coronha ao ombro e apontou a arma para um estreito tronco de mimosa a uns dois ou três metros, com a chama da vela a aquecer a extremidade do tubo.

Ao contrário do que era habitual, o estouro estava a demorar. Por um momento, o miúdo teve um assomo de receio. Nem sabia o que eram premonições. Baixou ligeiramente a cabeça, tapou mesmo o ponto de mira com a aba do chapéu que todos usavam no campo. Por fim, o estampido, uma dor fugaz, o negro.

Acordou com todos à volta dele, em grande alarido e alarme. O miúdo tinha dores, deitava sangue do olho, havia muitos pingos no chão. O tubo também caído indicava o que tinha acontecido: com a força de recuo, soltara-se da fixação à tábua e entrara pelo olho adentro do miúdo imprudente. Os pais estavam desanimados e zangados.

Fartei-me de dizer para não brincar com aquilo, que é perigoso, mas não… Só faz o que quer!

Já está “desmanzelado” o meu filho! — choramingava a mãe.

Logo depois, ensaiaram várias experiências visuais:

Tapa o olho esquerdo. O que é que eu tenho na mão? É uma colher ou um garfo? E agora, são dois ou três dedos?

Embora com forte perda de visão, conformaram-se por o ferimento não ter sido maior. O olho podia ter sido vazado.

Souberam então da ausência da bezerra. O que foi?; como?; porquê? — queriam saber. O miúdo, só tinha uma desculpa:

Foi ele!

Então e tu deixaste? E porque é que não foste chamar-nos? — eram perguntas cujas respostas o miúdo não sabia dar.

O pai estava descoroçoado. Andava a guardar aquela bezerra de boa raça para fazer criação. Começou por chamá-la, esperando que ela mugisse e a localizasse. O queijeiro também estava um pouco constrangido. No fundo, alguma responsabilidade havia do seu filho, nada habituado à vivência de uma quinta agrícola e pecuária.

Com os brados, outros vizinhos se juntaram à procura da vitela. Dividiram o grupo em três equipas e partiram em direções próximas daquela em que a vitela desaparecera. O miúdo ficou em casa com a mãe e durante um bocado ouviu os chamamentos das buscas, para os lados da zona florestal.

Passadas duas horas, chegou o pai. Vinha alterado. Não disse o que tinha acontecido. Não disse se tinham ou não encontrado a bezerra, nem o destino que lhe tinha sido dado. Certo é que a novilha não voltou à cerca. Pegou na espingarda e saiu, dizendo que ia dar uma voltinha à caça; para desanuviar, certamente. Menos de um quarto de hora depois, ouviram-se dois tiros bem próximos. Ele não costumava encontrar coelhos tão perto de casa, mas parece que desta vez tinha tido sorte.

Não; com a irritação, tinha acertado numa das cadelas. Coitada, entrou a ganir baixinho e a tremer, largando pingos de sangue de vários pontos da pele, e foi tentar encontrar alívio junto ao lume. Mas via-se que estava em sofrimento. O homem que numa só parte da manhã tinha tido um filho aleijado, uma vitela perdida e uma cadela chumbada saía e entrava em casa, visivelmente desnorteado. O peso do irremediável oprimia, uma e outra vez. Por fim, deve ter tomado uma decisão. Pegou novamente na espingarda, dirigiu-se para a porta e chamou a cadela ferida. Todos sabiam o que se seguiria. Mas antes de sair, parou, virou-se para o miúdo e convidou, a voz doce:

Anda! Queres vir? Anda!

O miúdo temia que o convite significasse o que lhe passou pela cabeça. Abanou a cabeça, receoso.

Mas, talvez o pai quisesse apenas fazer a pedagogia da dureza da vida, mostrando-lhe como a sua insensatez provocara a morte de uma cadela. Ou tivesse decidido, enfim, pôr-lhe nas mãos uma arma a sério. O mais assustador era o tom doce, amoroso mesmo, que não era muito comum no pai, muito menos nas últimas duas horas.

Anda!

Então, ó Domingos, deixa lá o menino! — à mãe também não passara despercebido o perigo. — Não vês que é uma criança? Vai, vai-te lá embora!

O pai saiu. De ouvido atento, o miúdo esperava o estampido a todo o momento. Sabia perfeitamente o que estava a acontecer. Imaginou a cadela a olhar para o dono, dono a quem servira lealmente, de espingarda apontada para ela.

«Podia ser eu» — pensou. Pareceu-lhe ver os enormes olhos negros da espingarda de dois canos a olhar para ele.

Um tiro, só um tiro se ouviu. O inevitável cumpria-se.

Joaquim Bispo


*

Imagem: Hecatombe na Herdade da Torre Bela, 12/2020.

* * *


Share




4 comentários:

Bom ano Bispo. Obrigado pelas tuas histórias. Um grande abraço à distância que os tempos não estão para brincadeiras.

Obrigado eu. Abraço e bom 2021, Portugal!

Postar um comentário