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quarta-feira, 23 de setembro de 2020

A DERRADEIRA VIAGEM

 



 

Três horas da tarde...  O sol escaldante de outubro, hoje, castiga mais que de costume. É um calor no limite do suportável, causa um imenso desconforto.

Dentro do ônibus, com poltronas quentes, sensação de incômodo, o roçar do plástico nas pernas, o suor teimoso, o cheiro acre de corpos ávidos por banho, tudo torna a viagem ainda mais cruciante. Nem as crianças param! O burburinho e a movimentação excessiva das pessoas provocam um desassossego no espírito que não sobra nem disposição para me concentrar na leitura.

A cada cinco minutos o ônibus para. É um sobe e desce sem fim. Em cada parada, a nuvem de poeira que sobe dos pneus em contato com a terra vermelha da estrada, envolve o ônibus, entra pelas janelas, e a situação chega a ficar desesperadora. O negócio é distrair a mente, tentar pensar em outra coisa...

Reparo na mulher sentada ao meu lado. Bem mais de cinquenta anos e, observando pelo semblante, não está nos seus melhores dias. De aspecto consumido, amargurado, frágil.  Alguma coisa lhe aflige... Puxo conversa. Falo do calor, do atraso das chuvas, e ela, dificultando o acesso, sussurra algumas coisas, completando as respostas com leves gestos e meneios com a cabeça.

De pouca prosa, uma pessoa incrivelmente humilde. Humilde na acepção completa da palavra: nos modos, na fala, no traje, e deixa transparecer também humildade de condição humana. Acho mesmo que está bem perto do miserável. Os pés enfiados em chinelos de borracha bem gastos, as roupas tristemente descoradas, as mãos enrugadas, calosas, unhas carcomidas. Fisicamente é um trapo! Mas o que mais me aflige são seus olhos! São terrivelmente descrentes, pedintes, sofridos.  

 

Queria tanto falar com ela! Mas como?! Sou tão sem expediente! A viagem será relativamente longa, e apesar da pouca conversa, consegui descobrir que vamos para o mesmo destino.

Noto que está remexendo a sacola. Que será que procura? Olhe só, é um rosário! Será que está com medo da estrada? Vou novamente tentar falar com ela. Se for medo, posso distraí-la, e até mesmo confortá-la!

Inútil... Recostou a cabeça, cerrou os olhos, mas sei que não está dormindo. Está rezando... Sei disso porque passa as contas do rosário por entre os dedos. Rezo uma Ave-Maria e cronometro o tempo. É o mesmo espaço de tempo que ela leva para passar os dedos de uma conta a outra.

 A viagem segue... Agora, além do burburinho torturante que não me deixa concentrar na leitura, ainda existe esta preocupação a me martelar os miolos. Queria tanto falar com ela! Pelas minhas contas já rezou o terço duas vezes. Continua com a cabeça reclinada e com os olhos fechados. Seus cílios estão úmidos... Tenho certeza de que sente vontade de chorar, de soluçar. Ou será que está chorando?! Chego a ficar irritada diante do cerco que ela criou, e mais irritada ainda diante da minha impotência.

Engraçado! A mulher deve ter adormecido. Já não corre mais as contas do rosário pelos dedos. O sono é mesmo mágico! Olhando agora, seu semblante não tem aquele amargor de antes, há uma aparente leveza nos traços do seu rosto. O corpo está relaxado, solto. Balança quase que suavemente, apesar dos solavancos do ônibus.

A estrada está uma lástima! Não sei se pela falta de chuvas, mas a terra muito batida deixa as imperfeições do terreno mais salientes. Talvez seja o excesso de calibragem dos pneus. Sei lá! Só sei que pula tanto que fica difícil equilibrar o corpo sobre a poltrona.

Maria Santíssima! Que sono profundo tomou conta da minha parceira! Nem se incomoda com o balanço do ônibus. Balanço é um termo muito suave, brando demais para descrever a situação. Na realidade mais parece um galope!

Acho que agora consigo ler um pouco. Afinal, minha preocupação não tem mais razão de ser. A parceira dorme calmamente, não me incomoda, não estou aflita.

Arre! Ainda bem que estamos chegando! Já se pode ver a cidade lá adiante... É muito bom chegar.

Fecho o livro, guardo-o na bolsa, passo um pente nos cabelos. Olho do lado. Minha parceira ainda dorme.

             ─ Senhora!

Toco-lhe o braço de mansinho para não assustá-la. Coisa horrível é acordar sobressaltada!

            ─ Senhora, já chegamos!

             Incrível a profundeza do sono! Inércia abissal!  Não consigo acordá-la...

             ─ Senhora, por favor, acorde! Já chegamos...

 Meu Deus, ela não acorda! Fico apavorada. O sono está muito estranho, já a sacudi de todas as maneiras.  As pessoas percebem a minha aflição, devo estar com a voz alterada! Em segundos, várias pessoas se juntam tentando acordá-la. Minha angústia cresce, percebo que não está apenas dormindo, algo mais sério está acontecendo! Esta aflição explode quando um homem, que após ter tentado acordá-la, diz:

            ─ Está morta! Esta mulher está morta!

Afundo-me no banco. Um gosto estranho na boca, uma sensação de fragilidade extrema, de desamparo, de incredulidade, um vazio imenso. Perdida em meus pensamentos não me atenho ao que se passa em redor. É muito confuso, vejo muitas pessoas, um corre-corre danado, vozes alteradas, todos falam ao mesmo tempo, todos querem vê-la, alguns se benzem...

Quando dou por mim, o banco ao meu lado está vazio. Ela se foi... Já havia ido mesmo! O sono é irmão da morte. Que morte santa! Será que foi quando seus dedos pararam de correr as contas do rosário?! Será que foi a morte que lhe deixou a feição mais leve?! Como não percebi... Por que não fez um sinal, não exalou um gemido, não pediu ajuda? Coitada, tal vida, tal morte. No banco, ainda amarfanhado pelo peso do seu corpo, entre as duas poltronas, o rosário caído. Ela mesma se abençoou...

             ─ Dona, o ônibus vai pra garagem! A senhora precisa apear...

 

 

                              Regina Ruth Rincon Caires                                                                            

 

 

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