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terça-feira, 9 de junho de 2020

Mudar de Vida


Era o primeiro dia de liberdade após o confinamento obrigatório e Mariana apressou-se logo a aproveitá-lo. Durante o longo período de quarentena meditara muito a sério no modo como até então passava os seus dias e tomara algumas decisões importantes para o futuro. Assim que tudo acabasse, iria mudar de vida!
Fizera até uma lista com os pontos mais importantes a cumprir religiosamente:
1)        Dar um passeio todos os dias, curto ou longo não importava, quer estivesse ou não muito ocupada com o trabalho.
2)        Falar com vizinhos, pessoal das lojas, pessoas em paragens de autocarro ou cafés, enfim, ter pelo menos uma conversa por dia sem ser pelo telefone ou computador.
3)        Retomar os almoços de domingo com a família, recebendo à vez os filhos e respetivas famílias.
Era estranho a quarentena tê-la afetado tanto. Viúva, trabalhava em casa há anos e desde que os filhos tinham partido, primeiro para os estudos e depois para as suas próprias vidas, vivia bastante isolada. Inicialmente ainda saía bastante para contactar lojas em busca de clientes ou para entregar encomendas, mas desde que um dos filhos criara uma página de Internet com as peças de artesanato que criava e vendia, reduzira as saídas a uma ida semanal aos Correios do bairro, altura em que aproveitava para fazer algumas compras, poucas, já que recebia quase tudo em casa.
Ainda mesmo durante os poucos anos do casamento, e sobretudo desde que enviuvara, fora-se distanciando, sem mal se dar conta disso, das poucas amigas que tinha, reduzindo os contactos a uns telefonemas esporádicos ou, mais recentemente, a meras mensagens de telemóvel.
Também o contacto com os filhos se foi espaçando, casados e com filhos tinham vidas muito ocupadas e com o passar dos anos descobrira que pouco ou nada tinham em comum. E apesar de adorar os netos, estes ainda eram pequenos e o barulho e agitação que pareciam acompanhá-los sempre faziam-lhe uma certa confusão, habituada como estava ao silêncio e sossego do seu pequeno apartamento e da rua calma em que vivia.
Se lhe tivessem perguntado no início de tudo isto se iria ter problemas por ficar fechada em casa, diria imediatamente que não, sem a menor hesitação. Que diferença lhe faria cortar uma saída por semana? Nada lhe faltaria, habituada como estava a comprar pela Internet. E com a pausa inevitável nas vendas por não poder fazer entregas, teria finalmente tempo para planear novas peças e dedicar-se a experimentar um novo tipo de artesanato que tinha há muito em mente. E podia também ir adiantando serviço, aumentando o stock das suas peças mais populares para não ficar assoberbada quando tudo recomeçasse. Sem falar em pôr finalmente o sono em dia, desde que as suas peças se tinham tornado mais conhecidas sofria de um deficit permanente, o dia nunca tinha horas suficientes para tudo e eram sempre as horas de descanso que sofriam.
Mas a realidade fora bem diferente. Talvez porque sempre fora um pouco do contra, saber que não podia sair causava-lhe ansiedade profunda. A casa, que sempre lhe parecera acolhedora, um verdadeiro ninho onde adorava passar o máximo de tempo possível, surgiu-lhe de repente como uma prisão, uma caixa claustrofóbica onde se sentia sufocar. A televisão, que suspirava por nunca ter tempo de ver nada, tornara-se entediante e uma perda de tempo. O monte de livros que aguardavam há anos que tivesse um tempinho para os ler continuavam quase tão intactos como dantes, folheara apenas alguns, logo desistindo por falta de interesse. E os projetos novos? Nada fizera, nem novas técnicas, nem reforço do stock.
Passara simplesmente os dias a andar de um lado para o outro, sem ter sossego onde quer que se sentasse, irrequieta como nunca o fora, nem em miúda, sem se conseguir concentrar em nada. Nem o sono pusera em dia, agora que podia dormir à vontade sofria, pela primeira vez, na vida de graves insónias que a faziam passar a noite a revirar-se na cama sem arranjar uma posição cómoda.
Mas agora que já se podia sair, embora com restrições, ia ser tudo bem diferente. Sim, iria pôr em prática a sua lista e começaria logo hoje, o primeiro dia de liberdade.
Ainda não eram 8 horas e já estava na rua, a caminho de uma pastelaria por onde passava frequentemente sem nunca entrar e onde decidira tomar o pequeno-almoço. Mal se viu finalmente fora do prédio, respirou fundo e começou a andar a passos largos, apesar de não ser longe. Os primeiros minutos foram tudo o que sonhara. Mas depois o som dos carros em hora de ponta, as buzinadelas, o bulício das ruas, o ter de se desviar vezes sem conta de outros peões de ar apressado, a caminho sabe-se lá de onde, recordaram-lhe as razões de não gostar muito de sair. E foi com alívio que entrou finalmente na pastelaria, infelizmente a abarrotar e com um nível de ruído que excedia certamente os limites legais.
Uma vez sentada, o que acarretou uma longa espera por entre empurrões e cotoveladas, tentou pôr em prática o segundo ponto da lista metendo conversa com o empregado que a serviu. Mas o movimento era muito e as suas tentativas caíram literalmente em ouvidos moucos. Teve até de devolver a torrada que pedira com manteiga e que veio seca.
Olhou à volta para ver se teria mais sorte com as mesas vizinhas, mas não viu ninguém que parecesse ter disponibilidade para dar dois dedos de conversa, estavam todos concentrados nos respetivos telemóveis, mesmo os que estavam claramente acompanhados. Para não ser a única a olhar para o ar, tirou o seu da carteira e fingiu que o consultava enquanto comia.
No trajeto de regresso a casa, tendo desistido de um passeio mais longo por ter ficado com uma tremenda dor de cabeça e uma certa azia imediata devido ao galão quase frio que tomara, esforçou-se apesar de tudo por observar o que a rodeava na esperança de passar uns momentos de convívio e averbar o segundo elemento da sua lista. Mas só via pessoas azafamadas, de rostos fechados e olhos no chão ou a falarem ao inevitável telemóvel. Ao entrar no seu prédio, teve a sorte de encontrar a vizinha do andar de baixo, que chegava ao mesmo tempo carregada de compras. Mas meia dúzia de palavras bastaram para lhe recordar que nunca se tinham dado bem e que sempre a achara uma idiota convencida.
E foi com um suspiro de satisfação que entrou em casa, na sua bela, confortável e acolhedora casa, jurando não voltar a repetir tão triste experiência.
O terceiro ponto da lista foi o que mais durou. Cada um dos quatro filhos teve direito a dois almoços dominicais, preparados a rigor como no tempo em que o marido ainda vivia e insistia num convívio dominical de acordo com as tradições da sua família. Gostou de os ver, claro, aos netos sobretudo, apesar de nada ter para lhes dizer nem eles a ela. Mas quando chegou o momento da terceira ronda arranjou a desculpa de uma gripe oportuna para interromper a nova rotina. E passadas umas semanas sem que a “gripe” passasse, foi um dado adquirido para todos que se voltariam a ver como dantes, esporadicamente e por pouco tempo.
E a vida voltou ao normal!

Luísa Lopes

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