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domingo, 29 de março de 2020

Esperança


 

Luís olhou demoradamente a chave que tinha na mão, quando já estava em frente à porta.

Depois de tudo o que se tinha passado, continuava a conservar aquela chave. Ao utilizá-la, acederia a um mundo que deveria estar esquecido e ao qual ele não pertencia. Por uns segundos, considerou dar a volta e ir embora desaparecendo para sempre daquela situação. 

Deitando o pensamento para trás rodou a chave na fechadura e abriu a porta que cedeu sem dificuldade.
O hall do apartamento encontrava-se na penumbra e com a mão direita tateou, conhecedor, o botão que acendeu as luzes.
Percorreu com o olhar a sala, o sofá que lhe trazia tantas recordações… e apenas tinham passado três meses desde que estivera ali a última vez.
A pequena mesa, entre os sofás, tinha dois copos, um dos quais tombado. Havia amendoins e pistáchios espalhados no tampo e no chão.
Mantinha-se, por cima do sofá maior, o desenho a lápis da torre Eifell, que ele fizera numa outra vida. Durante a lua de mel na cidade luz. Tudo estava como antes; a mesma mobília, os mesmos tapetes, as mesmas pinturas…
Dir-se-ia que o tempo parara naquela casa no mesmo dia em que se fora.
- Isabel! – Chamou suavemente, quase com receio. – Onde estás?
Avançou pelo corredor que levava aos quartos, não acendeu a luz porque a iluminação que saía da porta para onde se dirigia era suficiente.
- Isabel! – Insistiu, enquanto caminhava devagar.
Na entrada do quarto, chutou uma garrafa abandonada no chão, que rebolou para debaixo da cama. Parou junto ao candeeiro de mesa de cabeceira que também ali jazia tombado.
Sobre a cama, numa amálgama de lençóis, cobertores, almofadas e longos cabelos escuros desalinhados, estava um corpo imóvel enrolado sobre si próprio.
Pé ante pé, aproximou-se e pousou suavemente uma mão sobre o braço da jovem, sussurrando:
- Isabel! Estou aqui.
Dois olhos iluminaram-se com um estremeção, por trás dos cabelos negros, enquanto a voz chorosa se lamentava:
- Luís, ele foi-se. Ele foi-se novamente, mas desta foi de vez…
Pacientemente, ele sentou-se na cama, aconselhando :
- Tem calma, já sabes que ele volta sempre…
- Desta vez não. – As lágrimas corriam livremente no rosto belo que ele descobrira com movimentos suaves por trás da cortina de cabelos. – Voltei a fazer-lhe uma cena, ele tinha-me avisado que não me aturava mais cenas de ciúmes.
Luís olhou-a com pena, enquanto lhe acariciava o rosto e perguntava:
- Que vamos fazer de ti, meu amor?
- Eu não consigo! – O choro tornava-se mais forte. – Elas comem-no com os olhos, não posso ir com ele a lado nenhum que elas querem tirar-mo e ele é meu, só meu!
Escondeu o rosto na perna dele, enquanto chorava descontroladamente.
- Como foi desta vez? – A voz profunda dele não mostrava particular interesse enquanto lhe afagava o cabelo.
Por entre soluços ela explicou:
- Foi no restaurante… No Mario’s; uma empregada nova… loira, pequenina, passou a noite inteira a fazer-se ao Carlos.
- Tu costumas ver coisas onde elas não estão. – Censurou-a com meiguice. – Sei-o bem. Não estaria a pequena a ser simpática apenas? É uma empregada, tem que agradar aos clientes.
Isabel parou de soluçar, rodou a cabeça e olhou-o nos olhos:
- Achas que não sei ver quando me querem o homem? Baixava-se de forma a mostrar o decote todo! Dava para ver o umbigo!
Ele não conseguiu conter um sorriso.
Isabel recomeçou a chorar:
- Vês? Nem tu me levas a sério. A gaja estava a atirar-se a ele. Quando estávamos a meio da refeição ela veio perguntar se estava tudo bem e eu não aguentei mais. Gritei-lhe que viéssemos embora.
- Mas vieste com ele… Ele trouxe-te cá?
- Aqui é que foi o pior. Eu tentei acalmar as coisas e fazer-lhe uma bebida mas aí quem explodiu foi ele. Atirou com as coisas, gritou que não me queria ver mais e foi embora. Agora nem me atende o telemóvel...
- Vais ver que não é nada! Está zangado, mas vai passar.
Chorava, agora mansamente e deixava a cabeça caída na perna dele gozando dos afagos carinhosos e cheios de amor que recebia.
- Só tu me entendes, amor… - Lamentava-se entre as lágrimas. – E tratei-te sempre tão mal…
- Não vai ser com certeza agora que te vais querer redimir. – O tom de voz alterou-se ficando mais cínico. – Por isso não vamos falar do assunto.
- Perdoas-me? – A voz dela principiava a arrastar. – Eu não queria fazer-te… mal.
- Não tenho nada a perdoar-te. Achaste que era altura de mudar de vida e mudaste…Tomaste alguma coisa? – Perguntou preocupado.
- Sim… Tomei um calmante… Tenho… muito sono…
- Então deixa-te estar, dorme, descansa.
- Fica…
Olhou o relógio. Duas horas e trinta e cinco da manhã… Como de costume, ela ligava-lhe e ele corria para os braços dela a consolá-la… Das dores de outro.
O respirar dela tornara-se ritmado, entrecortado a espaços por pequenos suspiros. Ele não se cansava de lhe acariciar o cabelo. Parecia incrível como amava aquela mulher que o desprezara e abandonara. E ele tornava a correr, como um cachorrinho, sempre que ela estalava os dedos; deixava a casa, a cama e a sua atual mulher, que cada vez achava menos graça à situação.
Uma lágrima rebelde escorreu até ao queixo e pingou nos lençóis.
Ajudou-a a poisar a cabeça no travesseiro e levantou-se.
Apanhou-lhe o telemóvel do chão, procurou a última chamada recebida e leu: “Chamada perdida, Carlos 5 de maio 2010 1:45”
Sorriu. Ela dissera-lhe que ELE é que não atendia o telemóvel…
Pegou no seu próprio telemóvel e marcou o número:
- Carlos? Sim, sou eu. (…) Claro, já sabia que me chamaria. (…) Está a dormir agora. Parece que tomou um calmante. (…) Sim, vem para cá, eu vou embora. (…) Vá lá, já sabes como ela é, fica furibunda, mas é doida por ti e não consegue conter os ciúmes. Vem para cá e deita-te ao pé dela, vais ver que amanhã fazem as pazes. Um abraço. (…) Não te preocupes, sabes que me preocupo com ela e que vocês podem contar comigo. Adeus.
Desligou o aparelho e aproximou-se novamente da cama. Cobriu-a com o lençol, depositou-lhe um beijo na testa e sussurrou-lhe docemente:
- Adeus meu amor, ainda não é desta que volto para ti… Um dia hás de pedir que o faça… Prometo aqui que só me tornarás a ver nesse dia… E, mesmo que não te torne a ver, amo-te demasiado para te desejar mal. Adeus.
Deitou um último olhar ao corpo adormecido e caminhou lentamente até à porta fixando demoradamente cada objeto do corredor e a posição de cada móvel. Tinha a sensação que não mais voltaria ali.
Sopesou a chave no bolso, enquanto perguntava a si próprio se a deveria deixar na mesa da sala.
Cada passo dado demorava mais que o anterior até chegar à porta da rua. Uma vez aí, pensou que um dia, Isabel iria precisar de ajuda novamente; iria telefonar e ele viria correndo uma vez mais, na esperança que fosse para ficar.

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