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quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Acalanto de passagem


Escultura: Johnson Tsang


A profissão, escolheu cedo. Nenhum acaso, nenhuma hesitação. Apenas um desejo de estar lá. De estar lá inteira, com mãos de afagos, lágrimas honestas. E um dó imenso daquele silêncio obrigado, daquela hora repleta de ninguém, do frio permanente. Quis ser o que era. Tinha de ser. Foi feita para a despedida, para o momento em que os remorsos e a saudade e todos os duelos tramados entre razão e emoção se tornam inúteis.
Quem mais entenderia o nada como ela? Ela que sempre foi nada. Um cisco escondido atrás das portas. Tão leve que sob o seu corpo se recusavam a ranger as tábuas velhas do soalho. Ela e sua presença ignorada. Sem chamados, sem vozes de afeto, sem abraços de carinho, sem direito a querer, doer, gritar. Quem mais enxergaria o nada? Esse não ser que ainda assim se desconforma. Esse não ter que ainda assim cobiça. 
Por isso se entregava a eles. Para lhes dar o impensado: atenção. Uma ou duas carícias leves no rosto frio, na cabeça fria, nas mãos postas em entrelaçamento de oração. Tivessem ou não fé. Para lhes recitar um monólogo curto de acalanto. Um acalanto de passagem. 
Ela escolheu. Em cada ida ao quarto apertado e sem janelas da avó doente, esquecida sobre a cama suja. Em cada poço escuro que viu no fundo dos olhos da mãe traída, abandonada. Escolheu que morrer devia ser sem solidão. 
Quando começou na profissão de preparar os mortos, ninguém ligou. Não houve desprezo, nojo, deboche. Ela não valia opinião. Não rangia tábuas. Então, ficou sozinha com o primeiro corpo. Depois com outro, e mais outro, e mais tantos que os anos trouxeram. Iguais em sua última presença visível. Nus. Marcados. Solitários. 
Imaginava-os em medo, angústia, ansiedade. Espíritos, energias, matérias, o que quer que fossem. Presos ainda à tensão da vida. Procurando por um rosto conhecido na sala impessoal com cheiro de substâncias fortes. Buscando suas gentes de afeto. Não havia. Ali, só mesmo ela. Para limpá-los, vesti-los, pôr-lhes um terço entre os dedos, pentear-lhes os cabelos. Para fazê-los se sentir um pouco mais que inquilinos em vias de despejo. 
Ela escolheu.



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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
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