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sábado, 16 de novembro de 2019

Trocando de pele (despudoradamente inspirado em A Metamorfose, de Franz Kafka)

Quando certa manhã Berta despertou, depois de um sonho intranquilo, deu por si embaixo da cama. A princípio, teve dúvida se poderia iniciar dessa maneira a descrição dos acontecimentos, com uma frase despudoradamente roubada a um grande autor, mas concedeu-se a licença e o uso da ideia. Sem nenhum remorso pela usurpação. 
Lembrava-se do corpo se revirando entre os lençóis pintados de borboletas, na véspera. Lembrava-se das dores. Não daquela habitual, de quase todas as noites, mas de uma outra, diferente, que sentiu em cada membro, em cada órgão que se remexia, se esticava, transformando-a numa coisa alongada e perigosa. Em uma coisa fria e silenciosa que rastejou entre os sapatos e o tapete até se enrodilhar sob a cama e dormir. 
Achou graça na nova língua bipartida, que amanheceu testando os cheiros no ar. Podia sentir o veneno dentro de si. A toxina diluída em sua saliva, pronta para ser ejetada em picadas mortais. Quis se ver. Arrastou-se em direção à cômoda sobre a qual um espelho grande estava pendurado. Gostou do movimento sinuoso dos quadris lambendo o piso frio de porcelanato do quarto. Subiu com facilidade pela lateral do móvel de madeira. Leve. Corpo e propósito concentrados nas coisas que queria fazer, que deveria fazer, que faria. No cristal, a imagem borrada trouxe frustração. Esquecera-se da miopia das cobras. Até nisso se pareciam, ela e sua forma transmutada. Lamentou que os óculos, acomodados desde a véspera na mesinha de cabeceira, não lhe servissem mais agora, nessa reinventada concepção de si mesma. Do alto da cômoda, lançou para fora, mais uma vez, a língua dupla, experimentando os odores do próprio quarto.
Ouviu passos do outro lado da porta e imaginou alguém entrando e se deparando com ela. A mãe, preocupada com o fato de ela não ter ido para a escola. A irmã, para pegar emprestada alguma peça de roupa. A avó, para oferecer um pedaço de bolo, uma laranja, um suco fresco, um carinho. Ele. O padrasto. Procurando por ela sob qualquer pretexto idiota. 
Não. Ainda não era hora. 
Escondida pelas dobras da cortina, ouviu a mãe entrar e chamar por ela. Berta? Berta? Berta, onde você está? Sentiu-se tentada a responder. Mas a mãe não a compreenderia. E ela não podia correr o risco de ser ferida ou morta. Ou enxotada de casa.
Novamente, passos. A avó entrou sem bater, carregando uma bandeja. Estranhamente, os pães de queijo e as frutas não a apeteceram. A fome que ela tinha agora reclamava outro alimento. Alguns ratos no quintal. O canário do irmão, acuado na gaiola. Mais tarde, antes de matar o primeiro bicho, iria achar que não conseguiria. Mas, do bote até engolir cada animal, sentiu apenas fome, prazer, saciedade. Com os roedores, tudo foi mais rápido. A caça, a morte e a refeição executadas somente por instinto. Com o canário, uma hesitação. Que pôs em cheque as duas Bertas. Uma que pensava sobre a perda que seria infligida ao irmão, tão apegado à ave; outra que só seguia cumprindo o seu papel na cadeia alimentar. 
O canário morreu, basta dizer.
Como era bom ser Berta assim. Esgueirando-se pelas quinas das paredes, pela umidade das calhas. Escondendo-se sob os móveis, entre as plantas, no fundo dos armários. Roçando a pele fria e dura nos pés da geladeira e do fogão, nos pneus dos carros. Arrastando-se pela grama, pelos cascos das árvores enfileiradas em quadrados de terra desenhados na calçada da frente. Uma casa inteira para ela, quintal e arredores. Como era bom ser Berta e dormir sob a cama, enrodilhada em seu próprio corpo. Esperando. Alheia ao rebuliço das pessoas procurando por ela. Ao choro da mãe, às rezas da avó, ao ar abobalhado do irmão que não sabia o que pensar. Ao padrasto, o único calado, quieto. Com medo de que ela tivesse ido embora para se afastar dele.
Os passos dele, pressentiu-os — antes de ouvi-los. A porta se abriu sem qualquer ruído. Alerta, a língua farejou o ar, confirmando o cheiro do padrasto. 
Onde está você, minha bonequinha? Onde? Volta pra mim, meu docinho! 
Esperou que ele se sentasse na cama. Arquejante. Excitado pelo simples toque no lençol pintado de borboletas. Esperou que ele começasse a se masturbar, a mão suada se agitando  nervosa em volta daquele pênis duro que a penetrava com pressa, que a machucava com pressa. Então, deslizou suavemente até ele e subiu rapidamente por uma das pernas da sua calça, pegando-o de surpresa. Enquanto ele se debatia, tentando arrancá-la de dentro da roupa, os seus sensores de réptil a guiaram diretamente até os raios infravermelhos que vinham daquela fonte pervertida de calor. Sua língua bipartida saboreou antecipadamente algumas gotas de veneno. E, enfim, chegou ao alvo.
A picada só durou um instante. O grito, não. O grito durou muito mais. 


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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
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