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terça-feira, 26 de novembro de 2019

Borbotão



















E me pergunto por que eu escrevo
por que eu ainda escrevo
— apesar dos tudos todos
apesar de todos
apesar de mim —
por que mesmo assim
com falta de jeito
(as musas e as fadas estão escassas)
quanto ruído
(os colibris rarearam há tempos)
por que não paro de escrever.

Se ele não vai ler.

Se há tanta obra ótima de gente ótima
nas estantes das casas na biblioteca na nuvem na livraria nos universos da universidade
no rol dos prêmios internacionais interculturais intergaláticos
no cânone no novo cânone no novíssimo cânone
nas bienais badaladas festas nos clubes do livro
nos vídeos do booktuber com mais de cem mil inscritos
se há tanta gente produzindo coisa que vale a pena que vale resenha que vale entrar na lista.

Se não quero edição emenda palpite se não quero opinião
se eu continuo querendo ter nascido clássica prontíssima irretocável
se me zango, dolorida, com crítica pesada cítrica ácida cáustica.

Se sinto náusea só de pensar
que ele não vai mesmo ler
ele não vai se interessar.

Fico pensando por que mesmo assim eu escrevo
se a infância não volta
e os boletos estão na gaveta de cima
impostos também na gaveta de baixo
— não completo mais um sonho no travesseiro —
e há necessidades não impressas e inadiáveis
corro o risco de perder o emprego a casa a esperança
se as doenças avançam com o aceno da velhice
se o tempo não nos redime de nada nadinha
menos ainda da falta de tempo
se maracujaremos todos até a morte ou morreremos antes, com pele ainda rija
(não há chá nem pinga nem verbo que refreie essas verdades)
se o meu bendito três-parágrafos
por mais lindo e queridinho que seja por mais criativo e refinado e exato
pode cansar mendigando piedade anistia
que não vai impedir.

Mas por que mesmo?
Se o anonimato me persegue
não agendaram meu passeio na cacunda do jabuti
se minha voz não merece escuta
se mil vozes se misturam
sou lugar-comum
mais ou menos mais pra menorzinho
se tenho problema com enredos improváveis contextos impróprios invencionices
se engulo vírgulas e as vomito onde não cabem
e vocês sabem
nada disso resolve nossas lacunas existenciais.
(Mas eu queria sarar em setembro com aquele verso escorregado da panapanã. E esse verso não brota. Não há primavera. Tô ficando mais doente.)

Escrever pra quê?
Se meu verso não abala estrutura
não arranca a dor de arrancar o siso
se não trata preconceito
nem abraça quem tem frio
se meu texto não vira emprego
não consola a mulher que apanha
não alimenta o bebê nem livra a menina do pai que abusa
nada alivia
minha fala não tem serventia.

Se as famílias indígenas estão sendo extintas
se a rede e a vaidade envenenam as crianças
elas já pensam em partir depressa
— o aluno negro só queria ir à escola
mas não chegou nem chegará.

Se a vida fica cada vez mais chula
o fascismo vestido de gente de bem
o danado insuportável impraticável execrável
usando até o nome de Deus. 
Tortura ligeiro virando lei.
Pra quê, então?

Só como prova de que estou viva e me importo com o que dói em mim e no outro?
Porque não me basto
só resta o consolo de que nada resolvo e só me complico
porque a vida é assim também
essa mistura de acaso com falta de propósito mais falta de dinheiro mais falta de revolução 
(o amor vem falhando)
essa doideira de causa consequência loopings descalabros desprogramados?
Porque a morte ninguém explica
só se vive (mais a dos outros que a nossa)
nenhuma palavra que se invente vai servir
nem pra “vida é bonita e é bonita”
e não adianta, que eu continuo borbotando teimosia?

Escrever por quê? Para quê? Se há só razão pra se livrar de desejo tão pentelho!

Mas por que não? Como não? Já que é esse mesmo meu motor meu destrambelho
só desse jeito sei sentir e vivo?

Se ele não ler, eu nem ligo.


Maria Amélia Elói


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