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segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Uma pedra no sapato de ténis



Casimiro Lopes começou a suspeitar de que qualquer coisa não estava bem quando, pela terceira vez, o seu parceiro habitual de ténis, Francisco Torrinha, deu uma desculpa para não fazerem a partida habitual. Não jogavam com muita regularidade — talvez de três em três semanas, muito longe das duas vezes semanais de uns anos atrás, quando ambos ainda estavam ao serviço da empresa —, mas era o suficiente para manterem a ilusão e a imagem de jogadores de ténis. Nem sequer eram grandes praticantes, apesar de jogarem juntos havia uns vinte anos. O ténis, agora, não passava de um pretexto para mexerem um pouco as articulações, calcificadas por tanto sedentarismo, e atualizarem o contacto.
Se, na primeira “nega”, Casimiro achou normal que o amigo não pudesse jogar por “ter de levar o carro à inspeção” e na segunda não pudesse, por andar “com uma dor lombar”, na terceira achou que as “compras no supermercado” bem podiam ser adiadas. Entre o surpreendido e o magoado, resolveu que não desafiava mais o amigo. Ele que telefonasse! Se a questão fosse circunstancial, Francisco haveria de arranjar um bocado da tarde para jogarem.
Passou-se um, passaram-se três meses e o telefone não cantou nenhum convite do amigo. Paciência! Casimiro é que não queria humilhar-se mais. Podia bem passar sem jogar ténis.
Quis o fado ou o diabo que Casimiro encontrasse um ex-colega da tropa, o Henriques, e chegassem à conclusão de que eram ambos jogadores de ténis a ressacar. E logo ali combinaram uma partida para o dia seguinte. Aziago dia esse!
Eram umas dez e meia, quando desceram dos balneários do Jamor para os campos de terra batida. O Henriques parecia jogar bastante melhor do que Casimiro, pelo que este se preparou para uma bela tareia. Na verdade, meia hora bastou para levar 6–2, na primeira partida.
Estavam a iniciar a segunda, com Casimiro a servir, quando este ouviu uma voz, seguida de uma risada, que muito bem conhecia. Estacou um momento, a determinar de onde vinha o som, e percebeu que vinha de um campo próximo, mas encoberto pelos arbustos de separação. Serviu, mas fez dupla falta. A seguir, meteu a bola na zona própria, mas um petardo do outro lado fê-lo ir buscá-la ao fundo do campo. Enquanto a apanhava, conseguiu espreitar por entre os arbustos e confirmar o que temia: Francisco Torrinha jogava ténis alegremente com outro tipo. E como se isso não bastasse, o outro era o Renato, o nojento Renato, o ex-colega de ambos que tinha das posturas mais irritantes na empresa. Irritante, manhoso e arrogante. Uma víbora com pernas.
O resto da partida correu ainda pior do que a primeira, se isso era possível. O sol queimava, a terra batida vermelha cegava, os olhos não conseguiam ver com precisão a trajetória das bolas. Quando a partida acabou com 6–0, Casimiro desculpou-se com o calor e voltaram aos balneários. Mais do que o calor, Casimiro já não aguentava a alegria que adivinhava no outro campo. Com o Renato!
O resto do dia não foi nada repousante para Casimiro. Pensou em mil e uma coisas que podia fazer, das mais vingativas às mais conciliadoras. A mais sensata, que acabou por prevalecer, quando, pelas três da manhã, o cansaço já se sobrepunha à raiva, foi a de confrontar Francisco com aquela facada nas costas.
No dia seguinte, foi esperá-lo à porta do infantário, aonde sabia que Francisco levava todos os dias a neta. Este não podia ter ficado mais surpreendido com a visita, mas pareceu a Casimiro que ele tentava disfarçar um ar comprometido:
Por aqui a esta hora? Pensei que a manhã era sagrada para ti!
Isso é um sarcasmo dos mais reles que já ouvi. Mais reles que isso é teres ido jogar ténis com o Renato — descarregou Casimiro, sem conseguir evitar o fel.
Mas o que é que estás a dizer? — ripostou Francisco, à defesa. — Quem é que te disse isso?
És capaz de negar na minha cara? Vá, diz; és? — faiscava Casimiro.
Sim, fui — admitia Francisco, vendo que não adiantava negar. — E daí? Qual é o problema?
O problema é que somos parceiros há vinte anos e ultimamente tens andado a evitar-me. E para quê? Para ires jogar com o mete-nojo do Renato! Com o Renato… Como é que foste capaz?
O que é que tem? Calhou! Encontrei-o no supermercado…
«Encontrei-o no supermercado» — repetiu Casimiro com voz de falsete. — Se te aparecesse o “Doninha” do Contencioso, também ias jogar ténis com ele, não? Agora vais com qualquer um? Não me admirava!
Ó Casimiro, qual é a tua? — aborrecia-se Francisco. — Mas então não posso ir jogar ténis com quem me apetecer? Era só o que faltava!
Pois, podes ir com quem te apetece, mas baldaste-te três vezes, quando te convidei. O que é que os outros têm a mais que eu não tenho?
Olha, por exemplo, estão dispostos a ir jogar de manhã, enquanto que tu…
Eu, quê? Se for o único período livre, posso ir de manhã. Ainda ontem fui — descaiu-se Casimiro — Tu é que nunca insististe!
Ah, tu podes jogar com outros e eu não posso! É essa a tua ideia de fidelidade?
Só fui porque tu nunca mais me ligaste. Assim, não! Também tenho sentimentos.
Ó Casimiro, não sejas assim! Não tem dado, mas podemos ir jogar um dia destes.
Amanhã? — apressou Casimiro, pela perspetiva de voltar a jogar com o amigo.
Eh, pá, amanhã não posso; tenho uma consulta no Centro de Saúde.
Eu não acredito que estava a ir na tua cantiga! — desesperou Casimiro. — Já percebi. Percebo até bem de mais. Sabes o que te digo? Vai-te catar! Eu não preciso de ti para nada. Se eu quiser jogar ténis tenho muito com quem.
Casimiro saiu de ao pé do amigo mais fulo do que nunca. «Falso!» — pensava para si. «Tu vais ver o que é bom...»
Daí a uns dias, tendo contactado um outro ex-colega que sempre conhecera como jogador de golfe, Casimiro deu as primeiras tacadas num campo de 9 buracos, num esplêndido espaço dos arredores. Saboreando o imenso relvado tratado e a cavaqueira com este amigo que já não via há algum tempo, comprazia-se sobretudo na vingança que estava a aplicar ao traiçoeiro Francisco.
«Bem fria é que ela sabe bem!» — confirmou ainda nesse dia, ao publicar no facebook uma selfie com o amigo golfista: tacos na mão, um esplêndido relvado e um lago em fundo, felizes.

Joaquim Bispo

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Imagem: Pintura mural no interior do restaurante anexo ao “court” central do Jamor, c. 1945 (?).
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