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quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

ALONZANFÃ

Zé Bumbo está animado para o carnaval. 
Zé Bumbo toda noite vai para o ensaio da escola.  
Zé Bumbo avisou à Adriane que até quarta-feira de cinzas 
vai varar madrugada na quadra.  
Adriane não gostou. Fez drama, disse que tinha 
aquelazinha de nome Janeide, madrinha de bateria, nesse angu. 
Adriane falou que não era boba, avisou que ia aprontar barraco na escola. 
Brigaram feio. 
Zé Bumbo ameaçou dar com a baqueta do bumbo na cabeça dela. 
Adriane disse que ia botar Zé Bumbo na cadeia. Debochou, riu na cara dele.  
Gritou “Lei Maria da Penha!” duas vezes. Ele perguntou quem era Penha. 
Adriane chamou Zé Bumbo de sonso e burro. 
Zé Bumbo não sabia o que era sonso, mas burro sabia. 
Lembrou da mãe e das professoras da escola primária pela metade.
Baixou a cabeça, esfregou a testa, sossegou o frege. 
Pensou no carnaval, na escola, na alegria com hora marcada. 
Zé Bumbo pediu desculpas. Não por Janeide, que só existia no enredo 
de Adriane. Nem pela tal de Penha, que nunca a viu mais gorda. 
Mas pela vontade que deu de dar com a baqueta na cabeça de Adriane. 
Adriane aceitou. Viu que ele estava fora de si. Viu que ela mesma estava 
rodopiando de ciúmes. 
Aquietaram-se. Choraram juntos. Beijaram-se. Abraçaram-se. Treparam. 
Noite inteira. Bum, bum, bum, bum, bum. Até que Zé Bumbo e Adriane 
perderam a hora. 
Chegaram os dois atrasados, cada um no seu serviço. 
Levaram descompostura dos seus chefes. 
Zé Bumbo engoliu sapo. 
Adriane tinha cabelinho nas ventas, disse poucas e boas à patroa. 
Largou vassoura, pano de chão, balde e Veja Lavanda no meio da sala. 
Zé Bumbo mais ajuizado. Pegou a pá e foi remexer cimento em silêncio. 
Só bumbo toca dentro dele. Zé Bumbo só tem o carnaval dentro dele. 
Não cabe mais nada. Apagou tudo que lhe aperreou. 
Lama tóxica. Chuvarada. Desabamento. Matança na comunidade. 
Os meninos que voaram do ninho para o Céu. 
Estranhou não estar ouvindo a voz familiar no rádio todas as manhãs, 
que sempre falava coisas indignadas que não entendia, 
mas ria do jeitão da voz. 
Zé Bumbo não ri mais. Zé Bumbo chora nada, vive nada. Só o Carnaval 
que está para chegar. 
Zé Bumbo não sente saudade de pai, mãe, irmãos, filho, de tudo que a 
vida levou pela enxurrada, pelos traficantes, pela polícia ou pelos 
milicianos que dizem donos da porra toda. 
Ano passado mandaram Zé Bumbo votar. Em qualquer coisa, mas votar. 
Pois votou em qualquer coisa. Diz que foi para acabar com a ladroagem. 
E com a sem-vergonhice também. 
Zé Bumbo não conversa com os colegas da obra. 
Zé Bumbo trabalha, toca bumbo e trepa com Adriane como se não houvesse
ninguém, nem nada mais em volta dele. 
Uma cimentada aqui, uma alisada ali, o tempo passando no muro que sobe. 
Zé Bumbo contempla a obra que chegou na metade.  
Lembra feliz que é dia de provar a fantasia na costureira.  
Uma fantasia a viver.  
Zé Bumbo vai ser soldado de Napoleão. Ensaia toda noite o samba enredo 
“ Alonzanfã. E se a França tivesse colonizado o Brasil? ”. 
Zé Bumbo não sabe o que o que é França Antártica. Acha que é cerveja. 
Também não sabe quem é Villegagnon do refrão do samba:  
“Villegagnon, Villegagnon, 
Se não perdesse a guerra, 
O Brasil era outra terra
Alonzanfã seria o hino
Mas Deus é quem manda no destino”
Zé Bumbo entende nada do enredo, sabe nada do que cantam.  
Não sabe o que é liberté, egalité, fraternité, sivuplé, merci,
(rendevu ouviu falar) e bom suar. 
Pensa que bom suar é trabalhar para levantar muro. 
Zé Bumbo só sabe a hora de bater o bumbo. 
Na certa nem sabe o que é França. Talvez nem sabe o que é Brasil. 
Vai ver que sabe sim: Brasil é seu bumbo, seu mundo é seu bumbo, 
seu bumbo é seu mundo. 
O resto que se foda. 
Zé Bumbo está animado para o carnaval. 

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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