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terça-feira, 1 de agosto de 2017

A Cantiga do Anti-Herói Bem na Sua Cara


Acabo de ler um texto da articulista Flavia Azevedo, publicado no site do jornal baiano Correio (link aqui: http://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/o-amor-datado-de-chico-buarque/), que tem sido amplamente divulgado e comentado pela internet. Flavia opina a respeito da nova (e tão esperada) canção do maior compositor que temos no Brasil. Pois já digo de antemão que, apesar do título soberano, não é intocável. Contrariando o dito popular, quem já foi rei está sujeito sim, a perder sua majestade. Todavia, ao contrário do que Flavia argumentou em sua coluna, Chico Buarque continua reluzindo sua coroa, refestelado de boas em seu trono. “Tua cantiga” não versa sobre um amor datado, como afirma Flavia, simplesmente porque o amor não se circula no calendário, nem aqui nem na China, nem amanhã nem quando sequer os sumérios haviam inventado de registrar os ciclos lunares e as datas. O amor talvez seja o único sentimento capaz de preencher e transbordar e no mesmo compasso esvaziar a humanidade de um homem. É o amor que nos torna inexoravelmente mortais. Não a morte.

E o personagem mais que mortal de Chico, nesta canção, talvez seja o anti-herói da nossa literatura romântica. Digo talvez, pois, seria no mínimo leviano interpretar seus versos sob uma perspectiva, apenas. Pior ainda, a meu ver, seria usar óculos de lentes fundas de ética e moralismo para decodificar seu texto melódico, ou qualquer texto que seja. Até porque, convenhamos, Chico jamais se propôs a uma convenção ou a um estado nobre de espírito. A subversão sutil de suas letras, sobretudo na voz de um eu-lírico feminino que nenhum outro letrista contemporâneo fora capaz de assumir com tanta magnitude, quebra toda espécie de discurso paradigmático, rançoso de “ismos” que mais se dedicam a teorizar o próprio umbigo do que contemplar uma obra de arte em todas as esferas cruas e abstratas que uma obra de arte pode gerar. 

Em um dos seus argumentos, Flavia explicita que “esse negócio de largar mulher e filho não desceu. Não funcionou”. Ora, há pelo menos duas maneiras de se interpretar esta passagem: 1) “largo mulher e filhos e de joelhos vou te seguir” pode ser uma metáfora. O personagem não antecipa na letra qualquer menção acerca de um lar, de uma família. Ele seria o tipo de homem capaz de abrir mão de todas as convenções em nome do amor por uma mulher. Ponto. 2) Pode não ser uma metáfora, de fato. E daí? No final da música, o personagem diz “mas teu amante sempre serei, mas do que hoje sou”. O termo “amante” pode nos conduzir à ideia de que se trata de uma relação extraconjugal; ou não. A priori, “amante” significa aquele que ama. E ponto também.  

Apresento essa visão rasteira somente para reforçar a ideia de que se ater apenas a uma interpretação, ainda mais se tratando de uma canção de Chico Buarque, é bobagem. E levar isso adiante, erguendo uma bandeira cujo pau não se tem onde fincar, uma bobagem ao quadrado. Chega a ser vibrante reler a acusação de Flavia, quando diz que a narrativa de Chico aborda um “amor covarde”, cujo personagem não passa de um “canalha fantasiado de super-herói”; vibrante, pois, é isso! O canalha fantasiado de herói é a mais perfeita tradução do anti-herói. É o cara (ou a mulher) que se entrega, que passa do ponto, que trai, que transborda e que se esvazia, possuído por essa coisa chamada amor que pode soar infantil, trouxa, torta, barroca, pós-muderna; que machuca, definha, exalta, delira. Não importa o gênero, idade, time de futebol. Chico, em “Tua cantiga”, apresenta só uma das facetas do que é viver realmente um amor, livre de julgamentos. A arte, assim como a vivência doce ou rústica de um amor, não tem sua existência atrelada às marteladas de um tribunal cujos juízes condenam ad aeternum somente pela vaidade. 

Inauguro o último parágrafo com a frase final da Flavia: “porque a gente mudou e até o nosso romantismo está, sim, numa outra vibe”. Honestamente, eu prefiro não estabelecer um critério social e antropológico sobre o romantismo nos dias de hoje. Até porque as estatísticas midiáticas me conduzirão automaticamente para manifestações como “me encara, se prepara que eu vou jogar bem na sua cara, eu vou rebolar bem na sua cara” e não-sei-quantos milhões de visualizações só irão corroborar tudo o que eu disse em relação ao single do Chico: seja o cafona, o canalha desertor de lares ou a emponderada no deserto do Saara; seja na cantiga do anti-herói ou no rebolado da odalisca – o amor, em todas as suas facetas românticas, pode estar bem na sua cara. Encare-o!




Link do Clipe Oficial 
de "Tua Cantiga":
 https://www.youtube.com/watch?v=dk8arhNQta0

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1 comentários:

Lohan, adorei este trecho inspirado: "O amor talvez seja o único sentimento capaz de preencher e transbordar e no mesmo compasso esvaziar a humanidade de um homem. É o amor que nos torna inexoravelmente mortais. Não a morte."

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