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domingo, 20 de agosto de 2017

ELISE

Hoje não tem conto. Nada de ficção, nada de invencionice. Talvez um ou outro número
impreciso, alguma cronologia fora do lugar, desimportâncias, enfim.

Fui acometido de uma vontade de desengasgar um personagem que durante tempos
frequentou a minha infância e adolescência como uma irmã que não tive
(só vim a conhecer o amor fraternal de verdade aos 21 anos) ou como uma companheira,
testemunha, cúmplice, sei lá, das minhas primeiras descobertas da vida,
nas quebradas da década de 50 para os anos 60: Elise.

José meu pai era fazendeiro, hobby quase profissional que mantinha em paralelo à sua
carreira sob o protetor e provedor Banco do Brasil. A fazenda era bem próxima ao Rio e
como todo fazendeiro, mantinha famílias de peões que trabalhavam na propriedade.
Uma dessas famílias era constituída por uma senhora de uns 40 anos, de nome Iraí,
abandonada pelo companheiro, alcoólatra (ele e ela), que vivia num casebre de
pau a pique e sapê, onde cuidava como brava boiadeira de um curral de triagem no meio do mato.
Dona Iraí, mãe de dois casais de crianças: Elvino, Edino, Elise e Eliete, trabalhadeira de dia,
bebum à noite, criava a prole ao Deus dará, sendo que os meninos mais velhos já se
encaminhavam para os Batalhões de Infantaria da região. Restavam as meninas. Meu pai e
uma de suas seis irmãs resolveram criar as quase mocinhas de Dona Iraí. Elise aos 9 anos
foi lá para casa e Eliete, de 8, para a casa da minha tia.

Eu tinha 6 anos quando Elise chegou num fim de tarde de domingo, carregando roupas e coisas numa sacola das Casas da Banha e um par de olhos que mais pareciam dois holofotes sob lacinhos de fita,
foi apresentada como a menina que iria me fazer companhia e cuidar de mim, já que minha mãe
trabalhava muito como professora e meu pai vivia atarefado entre o Banco, a fazenda e o tênis.

Isso foi o que me foi dito.

Na verdade, fui perceber bem mais tarde, que Elise era consequência da sociedade vigente,
ainda entranhada por resquícios de “Casa Grande e Senzala”, onde patrões rurais tinham o
hábito acolher crianças de seus peões em troca de serviço.
No caso de Elise, havia tudo isso, mais um ordenado justo, casa, comida e roupa lavada, médico,
dentista, tudo com total dignidade. E assim foi morar lá em casa, para ajudar a cozinheira,
fazer os trabalhos domésticos e me arrumar para a escola. Minha mãe, professora da rede pública,
não tardou em ajeitar um curso supletivo para Elise, embora já tivesse a menina chegado sabendo
ler, escrever e contar.

Na sua primeira semana, ao primeiro toque de telefone que ouviu, meteu-se debaixo do
beliche do seu quarto. Tempos depois, me confidenciou que ficou com medo da estridência
nervosa vindo sabe-se lá de onde. Na sua imaginação, telefone era um espaço imenso onde
a pessoa entrava e era abduzida a um outro mundo, onde uma voz do outro lado – também
sabe-se lá de onde – estabelecia um contato com o desconhecido. Imagine. Sem perceber,
estava eu diante de uma ficcionista científica, daquelas que o correr do tempo poderia
revelá-la gênio ou idiota.

Nem uma coisa nem outra.

Elise era a sinceridade e ingenuidade em pessoa. Certa vez foi comprar pão. Esperta,
logo aprendera as tarefas mais corriqueiras. Na volta da padaria, deslumbrada com outro
advento da tecnologia que havia descoberto -  a campainha da porta -  tascou o dedo
no botão durante minutos eternos.
- Pééééééééééééééééééééééééééééééééééééém!

Neste dia, meu avô estava lá em casa. Com estranheza, abriu a portinhola da porta
e viu o sorriso iluminado de Elise, debaixo de seus holofotes no olhar e seus
lacinhos na cabeça. Indignado, impaciente educador, meu avô fechou a portinhola.
- Pééééééééééééééééééééééééééééééééééém!

Mais uma vez, meu avô. Abriu, olhou indignado e fechou a portinhola.
- Péééééééééééééééééééééééééééééééééééém!

E por aí foi, por quatro, cinco, seis toques infindáveis de campainha, seguidos da
impaciência do avô, que não arredou pé de sua implicância.
Até que eu mesmo resolvi abrir a porta.
- Ué, seu avô não estava me reconhecendo!?

Numa tarde de um dia qualquer, minha mãe recebeu um telefonema. E respondeu em tom
lamentoso, assustado, aflito.
- Meu Deus, meu Deus!
E sem lagar o telefone, vira-se para Elise apressada:
- Elise, tire as capas dos sofás e das poltronas! Rápido, rápido!
E Elise parte para a cumprir a tarefa com desenvoltura, só que começou a chorar,
chorar, chorar.
- Menina, por que você está chorando?
-  A senhora está tão nervosa. Alguém deve ter morrido. Quem foi?
- Morreu ninguém, Elise. José inventou de trazer uns amigos do Banco para jantar. 
Vamos correr, vamos correr para arrumar tudo.

Histórias de Elise transbordam da minha memória. Lembro que sempre retribuía "Boa Noite"
a Gontijo Teodoro, na despedida do Repórter Esso. Lembro do dia que ela mesma declarou
ser o mais feliz da sua vida, quando minha mãe a levou ao cabeleireiro para fazer henê.
(Ah, os valores da época...). Lembro de sua companhia deliciosa nas manhãs de Tom e
Jerry no Metro Tijuca, nas matinés de Jerry Lewis e Oscarito, nas suas gargalhadas
contagiantes com o Circo do Carequinha. Lembro que tinha personalidade: era Flamengo,
numa casa de tricolores, americanos e um solitário botafoguense: eu mesmo por destino.
Quando Garrincha comandou aquele baile de 3 a zero no rubro negro na final de 62,
dia seguinte, ganhei do meu avô um uniforme completo do Botafogo: camisa listrada de
manga comprida estampando a mágica estrela no lado esquerdo do peito, calção e meiões pretos.
Ela desdenhou:
- Parece que está de luto.

Lembro do seu orgulho quando passei para o Colégio Pedro II e ela fez questão de engraxar
minha pasta de couro que me foi presenteada pelos meus pais meritosamente.  Lembro de
reproduzir para ela em casa as aulas de Português, História e Geografia, que recebia dos
vetustos professores, criando para mim mesmo um jeito de estudar. Lembro que ela era amiga
das minhas primas mais velhas e frequentava rituais familiares como se da família fosse.
Lembro de apresentá-la como minha irmã pretinha, com a pureza e inocência de tempos
diferentes de hoje, quando certamente seria processado, preso ou massacrado
nas redes sociais.

Um dia, minha mãe chegou encantada com uma professora angolana chamada Elise Echpo
Bassei, que conheceu num encontro de educadores. Pela semelhança do sorriso e do olhar
radioso, passamos a chamar Elise carinhosamente de Elise Echpo Bassei, apelido que foi recebido com bom humor e gratidão, tendo me provocado inventar situações, como apresentá-la a um
colega chato como uma estudante angolana. Neste dia pedi para Elise não abrir a boca, a não
ser para sorrir. Não sei se o chato acreditou até o fim, mas as risadas que explodiram depois
foram sinceras.

Elise era fã de Elvis Presley, enquanto eu iniciava meu encanto pelos Beatles.
Havia controvérsias veladas entre nós, até que em 1967, no lançamento histórico
do Sargent Peppers, ela achou que tinha me vencido.
- Como estão feios esses Beatles! Barbudos, desgrenhados.
Rebati com uma maldade. Disse que seu ídolo Wanderley Cardoso, um periférico da Jovem
Guarda, tinha mau hálito. Ela acreditou desolada. Como eu sabia? Não sabia.

E assim foram meus tempos adolescendo com Elise. A única manifestação sexual que aflorou
nesse convívio, foi num dia de ousada curiosidade. Percebendo suas jabuticabas escapulindo
pela camisola, perguntei inocentemente se já haviam crescidos cabelinhos na sua forquilha
entre as pernas.

Foi um desastre.

A indiscrição chegou aos ouvidos dos meus pais – com certeza, pela cozinheira carola -,
que me repreenderam e me colocaram num brando castigo. Talvez não ver Bonanza ou Jovem Guarda, ou não tocar os Beatles na vitrola.
Dias depois, entreouvindo uma conversa entre meu pai e meus tios, percebi o trauma que
a curiosidade sobre a tal forquilha poderia ter produzido em Elise.
A saber: de quinze em quinze dias, meu pai a levava para passar o fim de semana na fazenda,
com sua mãe, seus irmãos já sub oficias do Exército e sua irmã mais nova. Numa dessas,
Elise foi estuprada pelo novo padrasto. Ouvi a história em frestas, sem muito detalhes, mas o suficiente para entender a gravidade da estupidez.
A partir daí, alimentei uma pena protetora pela Elise, quando jamais a deixei se aproximar de
meus colegas do Pedro II, machos de ralo buço em permanente estado de ereção, à procura
de domésticas para desovar seus impulsos. Ah, os imbecis da época...

Elise cresceu no recheio afetivo da nossa família. Passou de acompanhante de um filho único
à cozinheira de forno e fogão e à administradora dos afazeres domésticos. Meu pai sempre
ocupado, meu avô recém viúvo sessentão, atarefado com as namoradas que lhe choviam,
minha mãe dando os primeiros e longos passos na administração da educação pública.
Elise cuidava da casa, fazia compras, preparava almoços e jantares. Já exibia a forma sensual
de uma menina de Angola, brejeira, sorridente e esperta como ela só.
Não tardou a ter uma conversa franca com minha mãe.
- Preciso falar uma coisa com a senhora. Estou namorando um bombeiro de São João de Meriti 
e estou apaixonada.

Naquele instante, minha mãe intuiu que estaríamos perdendo Elise. E para acolhê-la mais ainda,
cuidou a professora de mexer seus pauzinhos de autoridade pública e inscrever o pretendente num concurso para a Polícia Militar. Ele passou, sabe-se lá como.

Numa manhã de uma quarta feira comum, sentei à mesa para tomar meu café com leite
apressado antes de partir para o colégio, nesta época já o Colégio Andrews, onde me debatia
com Física, Química, Matemática e Descritiva, como se lutasse contra um polvo de Júlio Verne,
mas isso é outra história.

A verdade é que naquela manhã não havia mesa posta. Havia perplexidade e danação
de meus pais pela quebra da rotina. Curioso, entrei no quarto de Elise e nem vi seu chinelo de
dedo. Armário vazio, banheiro sem lavanda nem escova de dente. Apenas entreolhares perplexos
e desapontados entre mim, meu pai e minha mãe. A partir daquele instante, nunca mais saberia de Elise. Meu pai ainda tentou algum contato com a irmã dela que, por coincidência, tinha sumido da casa da minha tia exatamente naquela manhã. Na fazenda, não havia mais Dona Iraí – falecera
havia 5 anos - nem seu casebre no curral de triagem, muito menos a possibilidade de algum contato com seus irmãos.

O que adiantaria? O sumiço era eloquente.

Elise partiu sem deixar vestígios, pistas ou rastilhos. Nem mesmo o então soldado da PM
teve como ser encontrado. Só se sabia que se chamava Jorge, mas meus pais concordaram
com a sabedoria de Let it Be. Ah, os rapazes de Liverpool influenciando gerações...

Vinte e dois anos se passaram. Minha família estava desmembrada. Meus pais haviam se separado,
minha avó falecera bem antes. Anos depois, meu avô não resistiu a um aneurisma, eu já tinha
uma irmã por parte de pai e estava divorciado com dois filhos quase adolescentes.

Toca o telefone na casa da minha mãe
- Dona Lucy? É Elise, lembra de mim?

Minha mãe paralisou. Elise a tinha visto numa entrevista na TV, já que a professorinha
estava deixando o cargo de Secretária de Educação, aposentando-se do magistério,
partindo para estudar Direito.
- Quando vi a senhora na televisão, disse para minhas filhas: eu preciso reencontrar essa gente.
Foram eles que me criaram.

Passada a emoção inicial, ficou combinado um almoço numa churrascaria rodízio. E assim,
num domingo preguiçoso, sentamos a uma farta mesa eu, minha mãe, meus dois filhos,
Elise e suas três filhas – o soldado, agora cabo da PM, soube que estaria de serviço.
Filhas lindas e amorosas. Com traços e sorrisos tão angolanos quanto os daquela menina assustada
que chegou a nossa casa aos 9 anos de idade. As meninas eram mais velhas que os meus.
A primogênita tinha 21 anos.

E matei a charada.

Há 22 anos, Elise fugiu lá de casa, pois estaria grávida do soldado da PM.
Alguma coisa muito forte impediu que soubéssemos na ocasião. Medo? Vergonha? Paixão avassaladora? Desejo de chutar o balde da vida? Tudo junto? Tentei saciar a curiosidade,
ela me confirmou à boca pequena, entre uma linguiça, farofa e picanha fatiada.

Estava estabelecido o afeto interrompido. Saímos da churrascaria às lágrimas. A promessa
de vamos-nos-ver, não-vamos-nos-perder, temos-uma-história-de-vida ficou no ar.

Dia seguinte, na exata segunda feira, antes mesmo de dar meio dia, minha mãe recebe outro telefonema. Dessa vez, seco.
- Dona Lucy, preciso que a senhora me dê 5 mil reais (ou algum valor absurdo na época)
todo mês. 
- Como assim, Elise?
- Isso mesmo. Esse empreguinho de cabo da PM que a senhora arrumou não dá para criar minhas filhas.
- Elise, você quer trabalhar de novo conosco?
- Não, senhora. Quero uma mesada. Seu filho não vive dizendo que eu era a irmã pretinha dele?
- Desculpe, Elise. Mas não temos como. Podemos pensar outro jeito...

E Elise desligou o telefone. Súbita, como aquela quarta-feira sem mesa posta de café da manhã.
Nunca mais soubemos dela.

Que pena, Elise, que pena.

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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