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terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Newtão - Conto de Eduardo Sabino

Newtão

José Augusto da Silva, o seu nome de batismo. Newtão era o apelido que a turma havia lhe dado dez anos antes de seu falecimento. No início, o chamávamos assim por ironia. Depois, como ocorre quando os apelidos pegam, por estranheza em relação ao nome verdadeiro, de repente vazio e inadequado.
O nome era uma referência a Isaac Newton. O Newtão vivia explicando as leis da física e matando a nossa curiosidade - até quando ela não existia - sobre os eventos mais complexos do universo. Não o entenda mal, por favor, o Newtão estava longe de ser um chato monotemático. Sabia conversar sobre outras coisas. Como todos nós, dava seus pitacos sobre futebol, economia, política e televisão. Respeitava a hierarquia de assuntos que iam gravitando sobre a mesa, na ordem de sempre. Então depois, geralmente no fim da noite, quando o álcool já havia cumprido sua missão de tornar qualquer assunto agradável, ele introduzia a ciência no diálogo.
O grupo se formou naturalmente. Quatro pessoas bebendo sozinhas, após o trabalho, silenciosas ou conversando com o Manel no balcão. A presença carimbada de todos foi gerando, no início, identificação visual, depois um papo meio sem querer, uma conversa atravessada em que o Manel serviu como intermediário, então uma noite a cerveja de alguém foi repartida, para não esquentar na garrafa, e as conversas foram se desembolando e criando proximidade. Quando assustamos, beber sozinhos se tornou um incômodo, e o Manel passou a reservar uma mesa no canto para os Ariranhas, como nos denominamos.
O Newtão foi o último dos Ariranhas. Daí a dificuldade na aceitação, uma espécie de consenso não verbalizado de que ele era um intruso e logo sumiria do bar. Ganhou-nos na insistência, na cordialidade, no talento. Sabia correr um bom papo, ouvir e demonstrar interesse, e ainda mostrava um time invejável para as tiradas cômicas.
Cada um de nós tinha as suas frustrações e conquistas de juventude e mais cedo ou mais tarde elas se tornam assuntos recorrentes no boteco, dependendo sempre do momento, do humor, do clima. O Newtão lamentava não ter se tornado um acadêmico brilhante, internacionalmente conhecido. No curso de Física da universidade, sentia-se como o descobridor dos mundos. Vivia debruçado nos livros e pensava em coisas que dariam uma nova direção para a ciência. Uma nova direção, ele frisava, olhando-nos sem nos ver, erguendo a taça como se brindasse ao futuro do passado.
Suas ideias entrariam em rota de colisão com muitas teorias famosas estabelecidas por sujeitos do naipe de Newton, Rutherford e Albert Einsten. Quando a namorada engravidou, ele tinha vinte anos, e precisou trancar a faculdade e arrumar um emprego qualquer. Depois retornou, graduou-se com louvor, mas não tinha o pique e o tempo do estudioso revolucionário de antigamente. Tirou a licenciatura e contentou-se em dar aulas no ensino médio até a aposentadoria.
Nenhum de nós viu o bar do Manel nascer. Nas paredes havia quadros com boêmios famosos e celebridades da Hollywood dos anos sessenta. Recortes de jornais emoldurados ajudavam a contar a história do boteco. Nos anos setenta, um grupo de jovens sambistas com músicos hoje consagrados fazia ali ensaios abertos e muito concorridos. Em outro quadro, a referência ao maior campeonato de truco da capital, nos anos noventa, com sede no boteco.
Apreciamos o Bar do Manel e suas particularidades. Um detalhe fora do normal pode gerar incômodo e nostalgia. Certa vez o Manel removeu o quadro da Marilyn Monroe, já embolorado, para restauração, e a ausência dela tornou a parede de fundo cinzenta e inacabada. Quando as mesas de ferro deram lugar às de plástico, foi-se embora a alegria de retirar moedinhas da carteira e batucar um samba.
Não é exagero dizer que em dez anos de freguesia ajudamos a moldar o Bar do Manel. Tanto fisicamente quanto na atmosfera. Votamos pela continuidade da máquina de música quando o videokê começava a ameaçar os botecos tradicionais e até hoje fechamos a última rodada das quartas-feiras ao som de Belchior.
Instauramos padrões inegociáveis. O fígado com jiló nas segundas-feiras, o frango a passarinho carregado no alho. A Boemia saindo do freezer com sua adorável película branca. O ritual com o pano seco, contribuição do nosso físico, a fim de não encostarmos um corpo quente em um corpo gelado e evitarmos o congelamento. Também a bobeira de sempre, o Zé Carlos abençoando a primeira garrafa, batizando-a e dando a autorização para o Manel abri-la.
Só agora, Newtão enterrado, noto sua liderança na construção dos ritos. Os botecos têm lá suas leis universais, ele dizia. Uma delas estabelece que no intervalo entre a primeira hora de funcionamento e o instante em que o bar se fecha ao menos um copo será quebrado. Por bêbados desequilibrados, estudantes inexperientes, intelectuais espalhafatosos, não importa; um copo será quebrado.
Em uma noite lendária e remota, alguém deixou o copo se estilhaçar no piso e o Newtão ergueu sua taça e mandou um "Viva Newton", o primeiro de muitos, em alusão à lei da gravidade. Desde então, jamais deixou passar um copo quebrado, de modo que todos nós, e as pessoas em volta familiarizadas com o ato, respondíamos ao brinde de Newtão com um sonoro viva, constrangendo ainda mais o freguês desastrado.
Raras vezes Newtão nos disse algo a respeito de seus familiares. Sabíamos que tinha uma filha e quase não se viam. Que tinha uma ex-mulher e não conseguiam trocar duas frases inteiras no telefone. Que sua vida particular seguia um circuito fechado e repetitivo de acontecimentos. Morava sozinho em um apartamento miúdo no prédio JK, tinha um cachorro poodle que atendia pelo nome de Arquimedes, o único que o amava de verdade, gostava de fumar à janela olhando o trânsito engarrafado em volta da praça Raul Soares no horário de pico. Acordava onze horas, punha os óculos de sol, o tênis velho, o protetor solar, enroscava Arquimedes na coleira e faziam juntos a caminhada matinal até o horário do almoço.
O Newtão que todos conheceram no bar talvez seja, em boa parte, o sujeito que eu conheci, mesmo eu o conhecendo melhor, ou bem melhor, do que os outros o conheceram. Tudo porque uma janela se abriu no tempo e de repente Newtão abaixou a guarda e soltou a língua. Devo isso a um dia atípico e bastante cerveja.
Os ariranhas puxaram o carro. O bar quase sem ninguém. Somente nós dois. Ele não me deixava fechar a conta. Se eu me deixei levar – apesar do cansaço – foi pelo sentimento de que havia, desde o início, algo diferente em Newtão. Estava calado e distraído, forçou o riso em diversos momentos, em outros mal conseguiu rir. Não contou suas histórias nem desviou assuntos sem fôlego para o novo cometa ameaçador no universo ou o funcionamento dos buracos negros. As pernas estavam inquietas e ele fazia questão de disfarçar uma provável ansiedade reclamando do frio.
Manel colocou a notinha na mesa.
"Nós pedimos a conta, Manel?", disse Newtão, arrastando as sílabas.
Manel me olhou buscando alguma cumplicidade.
"Você não me fez um sinal?"
"Fiz sim", menti. "Tá na hora, Newtão. Pra mim já deu".
"Traz só a saideira então, Manel. Aí a gente vai".
Manel assentiu, um tanto irritado, recolheu o prato com os restos de cebola e andou apressado até a cozinha. Voltou com a cerveja e encheu nossos copos, não de uma forma gentil, mas apressada e sem jeito. A espuma subiu no meu copo e dei uma bicada antes que entornasse.
Newtão olhou o Manel se afastar e fez uma careta.
"Pensa bem, negar cerveja para os ariranhas. Tá de sacanagem, né?"
Olhei de novo as pernas frenéticas.
"O que você tem, Newtão?"
"Além de frio?"
"Sim. O que mais tá te incomodando? Pode falar".
Ele tentou ajeitar um sorriso, começou a dizer algo, desconversando, mas parou no meio do caminho e baixou os olhos, mirando o copo. Depois ergueu a cabeça e nos encaramos algum tempo; o rosto agora realmente triste, sem disfarces.
"Vi minha filha ontem".
"Onde?"
"No metrô".
"E aí?"
"E aí que tentei um contato visual. Não deu muito certo."
"Há quanto tempo você não a via?"
"Uns...sete meses."
"Vocês são brigados?"
"Não que eu soubesse. Até uns meses atrás a gente ainda conversava por telefone. Mas eu senti que ela fazia isso sem muito interesse, sabe? Então do nada parou de me atender, e hoje entendi tudo".
"Talvez ela não te viu. Pode ser que não te reconheceu, sei lá. Tinha muita gente?"
"Ela me ignorou, cara."
"Como pode ter certeza?"
"Eu me aproximei dela. Falei alguma coisa..."
Neste instante a voz se embargou um pouco, ele interrompeu a narração, segurou o tranco e retomou:
"Ela me tratou como as pessoas normalmente tratam os vendedores de bala. Disse que não tava afim e virou o rosto"
Pagamos a conta, despedimos do Manel e seguimos na Augusto de Lima. Newtão falava como nunca havia visto ele falar. Tudo o que ele não dizia sobre si mesmo durante tantos anos vinha abaixo num jorro. Atravessamos no boneco vermelho e Newtão não conseguiu evitar um tropeço quando o táxi acelerou e tivemos de esticar a passada. Falava dos arrependimentos. Do tempo que não dedicou à filha, da atenção que não a deu. Da falta de coragem de enfrentar as imposições da ex-mulher que, segundo ele, fez o diabo para afastá-lo da menina.
"Minha vida foi uma falta de rumo danada, cara. Se ao menos eu tivesse sido um exemplo de alguma coisa para ela..."
Tentei amenizar, uma vez mais.
"Não fala isso, cara. Você ajudou a dar um rumo na vida de muita gente. Vai dizer isso pros seus ex-alunos, maluco..."
"Eu não sou professor. Nunca fui professor."
Paramos na Rua da Bahia, na praça em frente ao Subway. Lá dentro a correria dos funcionários para fechar o estabelecimento, recolhendo bandejas com restos de sanduíche, limpando o chão, tampando os compartimentos dos recheios. Tirei um cigarro do bolso, o isqueiro do outro.
"O que você disse?"
"Nunca dei aula de física. Nunca dei aula de porra nenhuma nessa vida."
"Fez curso na universidade, pelo menos?"
"Não. Sempre fui autodidata".
Agora o desabafo me envolvia. Envolvia anos de papo e confiança. Se um cara em quem você confiou e de quem se tornou amigo se revela uma fraude, de repente a amizade entra num estado de suspensão e dúvida. Afinal nada impede que ela também seja uma grande fraude. Você se pergunta imediatamente se é amigo do cara por trás da mentira ou se a afeição é por um ser forjado, que agora deixou de existir.
Newtão era um funcionário público. Um ex-bancário da Caixa, não um professor aposentado. O interesse pela física o acompanha desde a juventude, mas o bolso vazio fez a diferença na decisão de concorrer a uma vaga no serviço público. Os saberes científicos vêm dos livros e das pesquisas no Google. Ele tem uma pasta no notebook com milhares de teses e dissertações. Tenta estar por dentro da academia, assina a revista Scientific American, escreve algumas coisas, para organizar as ideias, mas sem a intenção de publicar.
"Por que mentir sobre isso?"
Ele tirou um cigarro do bolso também, estendeu-o na minha direção e, quando o acendi, levou-o à boca e tragou duas, três vezes sem me responder nada.
Depois balançou a cabeça, deu uma baforada e teve um ataque de tosse, como se fumasse maconha. Então disse, num fio de voz:
"Não sei."
As coisas desenrolaram bem próximas do normal nos dias seguintes. Tirando o mal-estar quando alguém lhe perguntava algo sobre sua experiência na universidade e ele respondia sem o entusiasmo de antes e evitava de bater os olhos com os meus pelo resto da noite. Por sorte esse tipo de interesse não era corriqueiro.
Na sexta em que ele não apareceu, ligamos no seu celular e o telefone chamou até a mensagem de voz. Passamos o celular um ao outro, meio bêbados, fazendo graça e esculachando o furão. No dia seguinte, recebemos o telefonema da ex-mulher. Newtão havia sido achado morto por uma vizinha.
Ela bateu na porta e ninguém atendeu. Lá dentro, Arquimedes latia e arranhava a porta, morto de fome. O dono do apartamento alugado por Newtão morava três andares acima e foi chamado ao local. Chegou com a chave reserva e abriu a porta. Arquimedes arrastava a coleira na sala, que cheirava a mijo e cocô. Newtão estava de bermuda e tênis, estirado no chão. Ao redor do corpo, alguns objetos: os óculos de sol, o celular e mesa de centro tombada. Mais tarde, saberíamos: nosso amigo sofreu um infarto quando saía para se exercitar.
O velório reuniu pouca gente. A turma do bar, a filha, a ex-mulher, uma tia idosa, o padre que faria a encomendação do corpo e uma beata assistente. Por um instante me esqueci da mentira de Newtão e estranhei o fato de nenhum ex-aluno ter aparecido.
Preparado, como todos os cadáveres, para ser uma imagem fiel do vivo, Newtão não se saiu muito bem de morto. A morte suavizou as rugas de expressão, arroxeou os lábios e as pálpebras, anulou a veia sobressaltada na testa, mudou a cor do rosto. Antes um vermelho intenso, a cara sempre inchada, agora um branco-cinza-defunto. Nunca mais o sangue visível sob a pele, nunca mais a energia, o fluxo, o movimento.
No instante da encomendação do corpo, eu e o Marcão nos estacionamos na porta, enquanto os outros dois ariranhas rodeavam o caixão. O padre leu uma passagem bíblica e disse que um dia o senhor José e todos nós estaríamos juntos no céu. O nome de batismo definitivamente não caía bem em Newtão.
Fungar o nariz no salão, um gesto comum de quem chora ou retém o choro nos velórios - quando não está simplesmente resfriado. No pequeno salão, todos tínhamos alguma obstrução nasal, olhos levemente aguados, pesares discretos. Somente a filha exibia seu pranto, um choro forte e soluçante. Ela gemia e passava a mão sobre o rosto do pai, não mais um rosto estranho no metrô, e ele jamais saberia que tinha deixado de sê-lo.
Após o enterro, andamos a esmo no cemitério parque. Só então me dei conta. Era a primeira vez que nos encontrávamos fora do boteco. Uma experiência nada boa. De repente não éramos os ariranhas do Manel, mas conhecidos distantes, sem grande intimidade. Atribuí o incômodo à falta de cerveja. Nossas almas eram flores carnívoras regadas a álcool. No boteco do Manel, a conversa desabrochava na segunda rodada. Podia ser também a situação. A morte repentina de um amigo isola até quem a experimenta em bando.
Prometemos um ao outro não interromper os encontros no Bar do Manel. Nem uma semana. Nem um dia. A melhor forma de homenagear o Newtão era seguir com a vida normalmente.
No dia seguinte brindamos a ele, e a noite prometia. Íamos em bom ritmo na segunda rodada, o papo começando a se desembolar. Então um rapaz estabanado e com pinta de estudante de história abriu os braços para explicar algo a uma garota e, sem querer, acertou um copo. O copo caiu e se espatifou no chão.
As pessoas ficaram imóveis e silenciosas. Quebrou-se o copo e o tempo. O ambiente se encheu de expectativa. Quase todos deviam conhecer o rito e olhavam nossa mesa aguardando uma reação. O Manel vinha trazendo a terceira rodada e levou um baita susto. Pegou no meio da garrafa e congelou a cerveja. O estudante ajuntava os nacos de vidro sob os pés, bastante envergonhado. Não podia adivinhar a gravidade – psicológica, não mais física – daquele gesto involuntário. Por que as pessoas não voltavam logo a conversar? Ficamos ali trocando olhares de constrangimento, as caras subitamente entristecidas, sem brindar a nada, tentando repartir o silêncio e a atenção do boteco entre nós.
Quando o bar voltou ao normal, Newtão ainda estava lá.
Cancelamos a mandioca com torresmo, pagamos a conta e fomos embora.







*Eduardo Sabino nasceu em Nova Lima-MG, onde vive atualmente. Estreou na literatura com o livro “Ideias noturnas sobre a grandeza dos dias” (Novo Século, 2009). O conto “Newtão” integra o seu segundo livro de contos, “Naufrágio entre amigos” (Editora Patuá, 2016), do qual também faz parte o conto “Sombras”, vencedor do concurso Brasil em Prosa 2015. É um dos criadores do programa de entrevistas Literatura no Boteco. 

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Rafael F. Carvalho
Autor do livro A Estante Deslocada, é paulistano, nascido em 27 de Fevereiro de 1978. Foi publicado em antologias de novos escritores e em jornais universitários, e é formado em Letras pela Universidade de São Paulo.


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