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segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Relato de uma vítima

A doutora tem filho? É menino? Quantos anos? Oito. Ainda é pequeno. Eu tenho três. Doze, onze e quatro. Os dois primeiros vieram um depois do outro. Aí, eu pensei que tinha acabado. Mas uns anos mais tarde dei bobeira. Era pra ter tirado o último. Mas não arrumei quem fizesse o serviço e eu mesma não dei conta. Não me arrependo, não. É um menino lindo. Meus meninos são todos bonitos, doutora, acredita? Filhos desta mãe tão feia. 
A de doze anos é menina. Linda. Parece essas crianças de revista. Puxou os olhos verdes do pai. O do meio é inteligente que só. A professora empresta livros pra ele. Disse que se ele continuar assim, bom aluno, vai tentar uma bolsa pra ele fazer o ensino médio. Meus filhos são umas bênçãos.
Eu trabalhava na casa de uma mulher que nem a senhora, doutora. Chique, rica. As crianças dela eram uma belezinha. Cada uma com seu quarto. Tudo cheio de brinquedo. Tinha bichinho pintado na parede, almofada colorida, uma TV pra cada um. O armário dos meninos era cheio de roupa. Era tanta roupa que dava até agonia de olhar. Cada vez que eles cresciam, ela vendia tudo o que não cabia mais. Eu rezando pra ela não conseguir vender. Rezando pra ela dizer Vai querer, Carmelita? Eu ia, claro. Mas a danada vendia tudo. E quando não vendia jogava no lixo. Eu catava. Escondido dela. Abria os sacos de lixo e guardava as roupas numa sacola de plástico. 
Um dia ela me viu saindo com duas sacolas cheias. Mandou abrir. E me acusou de roubo. Não roubei, não, senhora, peguei no lixo. Dá no mesmo, ela disse. Você podia ter me pedido. Se roubou do meu lixo, deve estar roubando aqui de casa também. Me despediu na mesma hora. Cinco anos trabalhando pra ela. Por nada. Eu não era fichada, sabe? Na época era pegar ou largar, e o emprego era bom. Mas por causa do que aconteceu ela não me pagou um tostão. Nem os dias que eu tinha trabalhado naquele mês. Se você insistir, eu chamo a polícia e mando te prender! Saí de lá correndo. Morrendo de vergonha de ser chamada de ladrona. 
Depois disso, não arrumei mais nada, e o Tião, meu companheiro, começou a sustentar a casa sozinho. Naquela época, eu tinha só os dois mais velhos, mas já era muita boca pra comer. E eu não podia nem fazer bico porque não tinha com quem deixar os meninos de tarde. Quando eu tinha meu dinheiro, pagava uma mulher pra ficar com eles. Mas o Tião não podia sustentar a casa e ainda pagar a mulher. 
O dinheiro foi faltando e o Tião foi ficando cada dia mais nervoso, mais agressivo. Ele sempre bebeu muito, sabe? Mas deu pra beber mais ainda. Pendurava a conta no boteco em frente de casa. No fim do mês, pagava com serviço. Bebia todo dia. Ia direto pra lá, depois do trabalho, e só voltava se arrastando, bem tarde. Deu pra me dar porrada. E depois que me batia me obrigava a trepar com ele. Toda machucada, toda cheia de dor. Se eu não quisesse, ele forçava. Foi aí que eu acabei pegando menino de novo. 
Lá em casa falta tudo, doutora. No começo, eu até me virava. Ia com os meninos ganhar comida dos crentes. Mas o Tião desandou a implicar porque eles ficavam aconselhando ele a parar de beber. Não me deixou voltar. 
Sabe como é que a gente dorme? Todo o mundo amontoado num colchão de casal que fica direto no chão. O colchão até que é bom. Eu comprei à prestação quando estava empregada. Luz só tem quando entra um dinheiro extra ou quando o Tião faz uma gambiarra. Senão é na base da vela mesmo. Gás tem. O último botijão está pela metade. Como não tem comida, o gás sobra. A TV tá velha, mas funciona quando tem luz. Mesmo assim eu só ligo um pouco, de noite, pra ver a novela. 
Eu lavo e passo pra fora. Também faço uns salgadinhos pra vender na parada de ônibus e na feira. Quando sobra um dinheiro, eu escondo, senão o Tião gasta com bebida. A coisa tá ruim pra todo o mundo, não tá? Perdi muita cliente este ano. Mas eu nunca fui revoltada, doutora. Nunca senti raiva de ninguém. Nem inveja. Eu sou da paz.
Só tem uma coisa que me tira do sério. É safadeza. Aí, eu viro bicho.  Foi por isso que eu enfiei a faca nas costas do Tião. Enfiei, enfiei, enfiei até ele sair de cima da minha menina. De dentro dela. Até ela parar de chorar. Depois eu chamei a polícia. Queria que eles tirassem logo aquele filho da puta da minha casa. Não me arrependo de nada. Pelos meus filhos eu faço tudo.
Foi isso o que aconteceu, doutora. 

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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


6 comentários:

Que dor que eu senti ao terminar de ler seu conto! Eu até que estava gostando da personagem-narradora, mas quando li o final... ela virou minha heroína!

Muito obrigada, Elias e Rejane! Bjs

A minha amiga Fátima deu-me a ler o seu conto. Adorei ouvir este monólogo. Que belo texto para ser levado ao um palco. Quantas vozes de mulheres silenciosas esta voz contém. Parabéns!

Crueza? Malvadeza? Não! Realidade, verdade, e, como sempre bem contada e melhor narrada. Parabéns... Réjo Marpa

Muito obrigada, Helder e Reinaldo!

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