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sexta-feira, 15 de junho de 2012

laços

desde a Páscoa do Senhor que elas resolveram ir-se sem aviso
e eu que não sei de deuses e nem de infernos, céus ou paraísos,
e nem de um amor imaculado que interceda pelo seu descanso eterno,
e a mim console a alma,
escrevo a tentar o que de outro modo não consigo


despedida



estou aqui sem peça de roupa que agasalhe
a tristeza desabrochou-me
erecta
firme
desejosa de deitar ramos
aspergir-me de lágrimas
reflorir em choros

no interior do que nem sei onde
eu sou um novelinho cor de palha
um rolinho de penas que os pardais deixaram
um novelo das cartas
que nem nos escrevemos

estou aqui sem fato
não tenho nada que me identifique
espraiada como a areia
tomada pela maré enchente
nada na pele me assinala
nada no meu rosto traduz
e eu morri um tanto
morri um pedaço enorme

onde tu existias
onde te dizia até um dia destes
ficou vazio
e eu nunca te disse
nem uma palavra
e hoje
fico apenas muito triste
muita coisa ainda para dizer-se
muita mão ainda para apertar-se
e aquele etéreo
(tão etéreo que somos)
esvai-se no passado que fomos


o seu chá

Sentou-se como se ainda fosse. E já não era.
O chá soube-lhe demasiado à erva de que era feito, ardendo a água como se fosse isso apenas: água fervente.
E como pesava a chávena de uma loiça cara em azul debruada a oiro.
Maria Inácia entrelaçara o bojo com a mão inteira. A mão dela com os dedos nodosos de uma artrite antiga.
Sentia escaldarem-lhe cada um dos veios. Até nos ossos ela sentia o quente da água. Apertou mais um pouco. Aquele calor a trespassá-la braço acima, e a encolherem-se num desassossego os músculos de todo o corpo.
Um prazer estranho, pensou ela, a chávena muito apertada na mão esquerda.
E o fio de lágrimas que lhe marejou os olhos seria do imenso esforço.
Bebeu um minúsculo gole e sentiu aquele sabor estranho.
Eram seis sentados em redor da mesa. Ninguém bebera o chá fervente antes que ela tivesse bebido aquele golinho.
Foi só quando se ouviu o tinir dos talheres. O bolo de nozes a ser partido em fatias estreitinhas, o açucareiro a passar de um a outro. E o mel. E a casquinha de limão. E o ruído, raro, de algum sorver mais descuidado.
Maria Inácia serviu-se de manteiga numa torradinha de pão de centeio.
Amparou com a outra, a mão que segurava a chávena pelo bojo. Maria Ináca no esforço de colocar aquilo sobre o pires.
As mãos dela, cada vez mais inseguras do que fizesse uma e fizesse a parceira, tinham aprendido a entreajuda mesmo nos pequenos gestos em que nem deviam, que mais não fosse por uma questão de etiqueta à mesa.
Dentro em breve, seria o costume: lembra-se, tia? lembra-se mãezinha? sabe como foi avó, sabe? uma enchente de questões e ainda: conte-nos, Dona Inácinha na fala de uma amiga que estava lá por casa como se fosse da família. E Maria Inácia se contasse seriam recontos. Ou inventaria. E sorriu-se, os olhos perpassando cada um deles.
Quase distraída, foi erguendo a chávena. Subiu aquela loiça muito azul até à altura do colo e mais um pouco. A mão a segurar a asa, dois dedos apenas, e ela muito hirta, muito direita na cadeira.
Maria Inácia muito contente de conseguir executar aqueles gestos.




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1 comentários:

(...)a tristeza (...)desejosa de
reflorir em choros(...)

Pois é...

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