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domingo, 8 de janeiro de 2012

a fila

Foto: Volmar Camargo Junior
Título: O dono da calçada
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em boa hora vens e me tomas em tuas patas
outra hora eras cão
agora és uma gratuidade devota
por ora és dono da calçada
      [e de minhas botas

mas me incomoda estares a muito da altura dos olhos
       e sei o quanto queres isso que cheira quente e suculento
       [também eu quero, cãozinho
       [tenho tanta fome quanto tu tens a mim


onde andei desconheciam-me
aonde vou idem
percorri esses espaços
para ir
para ser
para quê?

se

meus medos minhas manias
ah, sim, os apelos
estes eu tenho
aqueles não mais

não quero compartilhar mais nada
nem posso
nada possuo de meu para ser também de outrem
nenhum vício ou valor só meu
nunca mais talvez

talvez só o que eu tenha sejam esses pés com que brincas
     [isso sim
     [isso eu posso dividir contigo

contudo ainda preocupa-me a distância que estás dos narizes
     [e definitivamente do lugar por onde anda a cabeça dos homens

ali, logo adiante, nietszche de allstars discute com platão de camiseta do manowar
lá, um tanto atrás, uma criança pranteia o papai que foi, ou por um doce, ou por que lhe dói, ou porque
     [há pouco melhor a fazer que chorar
aqui eu com vontade de chorar também, cachorro

contigo nos pés rindo risos de cão
comigo noutro tempo rindo de ti
sozinho na fila (acho que sou o quadragésimo segundo)

lá vai o banco do brasil para cima e para os lados
     [se ele caísse esmagaria-nos a todos
     [eu 
     [o bebê 
     [os filósofos
     [as moças que confabulam 
     [a senhora no fiat apalpando os peitos
     [a senhora à porta do restaurante que nos chama "vamos chegar para o almoço"
     [e a ti, cão

nem eu estaria olhando
nenhuma das caras na fila veria
ninguém veria
nada nada nada faria diferença
nunca mais se ouviria falar de mim ou de ti ou dessa gente toda com os dedos pintados de preto
não, não foi dessa vez que o banco desabou

quem quase caiu foi um senhor de guarda-chuva pisoteando sem ver
por cima de ti
por quê?
porque estás longe demais de para onde ele olha
e a carne morta em bifes no metal quente revolve as entranhas do velho 
assim como revolve as minhas
como revolve as tuas, cão

por isso o homem te pisa
por isso quase cai como cairia o banco do brasil
por isso quase morreste esmagado e tiveste de sair chorando teu choro de dor de cão
porque és cão e ele é homem
e a carne nos move a todos pelas tripas

e a fila andou
é uma e meia
lá vamos nós

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3 comentários:

o mal que me fazem seus escritos, Volm, é que me sobe esta intratável inveja: aí está ela a entrelaçar-se com a minha admiração e o meu respeito e tudo o resto que deixa de ser seu e é mérito desse belo texto

Esse texto dói. É triste. É do tipo que trava a glote. É para ser relido mais de uma vez e cada vez sob uma nuança da emoção. De tão dolorosamente belo. De tão necessário.

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