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terça-feira, 8 de setembro de 2009

Os gatos de Pereirópolis

Volmar Camargo Junior


Há muito tempo, mais ou menos na época em que o Ariri Pistola estava ficando rico levando mulas para São Paulo, aconteceu essa história. Pereirópolis ainda se chamava Vila da Pereira. Era um lugar tranqüilo, e ninguém tinha motivo para desconfiar ou querer mal aos seus vizinhos. Aliás, todo mundo era vizinho, já que viviam por aqui apenas trinta famílias. Todos se conheciam e, como se pode imaginar, um sabia da vida do outro.

Quando os tropeiros fundaram a vila, morava aqui uma benzedeira, muito, muito velha, miudinha, de cabeça branca e pele enrugada como uma uva passa. Não era bugra, nem correntina, gringa ou alemoa, e também não falava o português. Apesar disso, entendia tudo o que lhe diziam e, do seu jeito, se fazia entender — tanto que até hoje se sabe o nome que ela usava: Divige. Outra coisa sobre a velha benzedeira que virou lenda eram os seus gatos. Pelo que ouvi falar, a mulher vivia com mais de cem gatos dentro de casa, de todos os tipos, cores e tamanhos. Mas a gente sabe que os números de uma história contada de boca em boca tendem a aumentar.

Não havia hospital por perto — e olhe que perto naqueles tempos era bem diferente do que é hoje. As primeiras crianças nascidas aqui vieram ao mundo com a ajuda da Véia Divige, que era uma ótima parteira. Além disso, quem sofresse de alguma mazela, bicheira, mal-estar, diarréia, dor, machucadura ou torção era levado imediatamente para ser benzido pela velha. Ela fazia o serviço com brasa na ponta de uma tesoura. Fazia também umas chapoeiradas de plantas que ela sempre tinha no casebre de pau-a-pique. Quando não estava benzendo ou ajudando uma mãezinha a parir, a velha estava ao redor da casa, fazendo suas medicinas. Moía ervas, folhas e raízes num pilão feito de toco com um socador duas vezes maior que ela. Dona Divige era a médica, a farmacêutica e a farmácia da Vila da Pereira.

Nessa época, chegou à cidade um grupo de andarilhos que veio dos lados de Passo Fundo. Ninguém soube dizer se eram ciganos, artistas de circo, comerciantes, ou só vagabundos mesmo. Logo que chegaram, um rebuliço de opiniões controversas correu pela vizinhança. Permitiram que ficassem nos arredores da vila, com a condição de não causarem transtornos.

Dentro de pouco tempo, os moradores começaram a perceber coisas erradas. No início, sumiram miudezas como roupas de varais, galinhas dos terreiros, ovelhas do pasto. Depois, objetos de valor, subtraídos de dentro das casas: moedas, jóias, facas de prata. Até o ostensório da capelinha desapareceu sem qualquer vestígio do ladrão. As suspeitas, naturalmente, recaíram sobre os forasteiros. Apesar de abrirem seus casebres para quem quisesse procurar os objetos roubados, nada era encontrado, e a desconfiança contra os tais só aumentava.

Num certo fim de tarde de sexta-feira, uma das moças da vila não voltou para casa. A comunidade, posta em polvorosa pelos pais da menina, armou-se com paus, pedras e ferramentas de trabalho e arremeteu em peso contra os estrangeiros. Pegos de surpresa, os forasteiros não puderam reagir a tempo. Tudo indicava que os fulanos não escapariam vivos. Numa tentativa de defesa, o chefe do bando levantou a suspeita de que Dona Divige, a benzedeira, era a responsável pela desgraça. Segundo ele, a velha era uma bruxa, e eles, na verdade, eram os encarregados de capturá-la. A prova da culpa eram os gatos. Os animais eram os companheiros da feiticeira, criaturas vindas do inferno que, a cada década, precisavam alimentar-se de uma virgem em uma sexta-feira de lua cheia.

Convencida pelos argumentos do homem, e incentivada por ele, a turba de aldeões mudou de direção. Em minutos, acometidos pela fúria, homens, mulheres e crianças da Vila da Pereira investiram contra a minúscula casa da rezadeira. Misteriosamente, nem a velha nem os gatos estavam mais lá, o que, para todos, foi a prova necessária para condená-la. Atearam fogo em seus míseros pertences, acompanhados de gritos e expurgos contra os maus espíritos, entoados pelos que se diziam caçadores de bruxas.

Uma busca durante toda a noite foi conduzida pelos maridos e primogênitos da aldeia nos matos das redondezas. Os forasteiros, rapidamente promovidos a heróis, foram com eles. Hora após hora, e nenhum sinal da Véia Divige. Quando a madrugada ia avançada e a lua cheia estava no meio do céu, ouviu-se um grito medonho, de gente sentindo muita dor, “Acuda!”, seguido de uma barulheira, como se fosse uma briga de gatos por um pedaço de carne. Em seguida, outro berro, ainda mais terrível. Depois outro, e mais gatos, e outro, e muito mais gatos. Foi o horror! Os homens da vila estavam embolados, amedrontados, acuados feito bichos indefesos. Findos os gritos, os valentes correram a toda velocidade de volta para casa. Ninguém dormiu aquela noite.

Assim que o dia nasceu, os que haviam ficado de guarda correram chamar todos para ver o inesperado. A rapariga, que todos julgavam morta, apareceu com a cara amassada de quem acabou de acordar. Disse que havia comido umas frutinhas diferentes perto do açude e pegou no sono. Foi grande a comoção pela volta da mocinha, todos dando graças a Deus. Porém, o mal já estava feito. A casa da benzedeira ainda fumegou por muitas horas.

Passado o susto, perceberam que, depois da incursão ao mato, nenhum dos forasteiros retornou. Protegidos pela luz do dia, os moradores percorreram o mesmo caminho feito na madrugada. Nem é preciso dizer que dos estranhos “caçadores de bruxa” restou muito pouco. Cena feia uma barbaridade. No lugar onde os ditos cujos montaram suas taperas, foi fácil encontrar o buraco onde haviam enterrado um baú, cheio de tudo o que roubaram naquela e, muito provavelmente, em outras vilas.

A Véia Divige, essa sim desapareceu junto com seus bichanos. Ninguém conseguiu mais encontrá-la para pedir pelo menos um “me desculpe”.

Hoje em dia, aqui em Pereirópolis, quando um gato desconhecido aparece em roda de casa, é costume dar de comer e tratar o bicho muito bem. E se cuidar para não fazer nenhuma besteira com pessoas idosas, ou com crianças, ou cometer alguma injustiça. Nunca se sabe quando é que a Véia Divige vai voltar para cobrar o que fizeram com ela.



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