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quinta-feira, 7 de agosto de 2008

histórias

Maria de Fátima Santos


Foi-se despindo, peça a peça. O fato e o camiseiro de algodão atirou-os para cima da cama. Depois espalhou pelo chão cada uma das meias, o soutiã e as calcinhas de renda. Ficou nua. Escurecia. Sobrava um amarelo ténue do que fora o dia que ela passara dando formação na empresa. Fizera um calor intenso na sala sob o foco do projector de acetatos e ela aguardando este momento. Deixou-se ficar nua por uns instantes. Os raios de sol espraiavam sombras de si pelo soalho. Sentiu-se bela ao olhar o espelho.
Com lentidão, numa expressão que, vendo, era de quem reza, retirou um pequeno estojo de cima de uma cómoda. Pegou uma tesoura. Dessas tesouras de tratar as unhas, pequenina. Abriu-a toda e pegou-a pelo meio. Colocou a ponta mais fina sobre a pele do braço esquerdo. Pressionou com o dedo indicador onde lhe brilhava um verniz rosado. Formou-se uma pequena reentrância no local preciso de onde retirara, há nada, duas pulseiras de osso e um relógio caro. Pressionou um nadinha. Persistiu na intenção de perfurar apenas a pele na superfície. Um toque muito certo, e ela movimentando os lábios como se pedindo, como dizendo prece. Vagarosa e mole, escorreu uma gota. Um pingo de sangue. Um só pingo. Reconheceu a dor igual às outras vezes – intensa e subtil, doce. Puxou a ponta de pele como se fora adesivo. Repetiu em zonas variadas. Numas puxava a pele devagar, noutras dava impulsos descolando-a numa vasta área.
Nua, de pé, no quarto mal iluminado pela lua que nascia gorda, nem escorria sangue mais que aquela gotinha e depois mais outra em cada incisão da tesoura. O ritual ansiado.
Observou-se um instante. Pulsante de vida, a beleza remanescente do seu corpo descuidado da protecção da pele. Sorriu-se.

Hoje, decidira: ficaria inteira, aplicaria a técnica laboriosa que sua mãe lhe ensinara para despir a parte posterior do corpo. Uma arte que ela praticava apenas uma vez por ano. Hoje queria sentir-se total. Sentir, depois, o prazer de ser, ainda assim, reconhecida. Reconhecida pelas mãos, pelo cabelo, pela singularidade da sua zona púbica, pelo torneado dos pés. Reconhecidos, dela, o riso, o timbre da voz, a gargalhada, as lágrimas. O olhar.
Desfez o cabelo muito negro e prendeu-o no alto da cabeça. Enfeitou-o com dois alfinetes de safiras. Foi compondo pelo corpo tiras estreitinhas de gaze que tingira de um tom de verde alface. Colocou nos pés chinelinhas de seda preta bordada a prateado. Cada uma das mãos calçou-a com luvas de renda muito branca. Na direita, colocou, sobre a luva, um vistoso anel. Uma gema enorme.
Volteou-se mais uma vez em frente do espelho.
Já a noite se desenrolara, já a lua galgara altura no céu, quando saiu.

Eram dezenas dançando.

..........

dizem que voltava cada um ao seu trabalho ainda recuperando a pele por debaixo dos fatos.
dizem que são apenas histórias...contados…

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3 comentários:

Fátima, penso que é preciso ser mulher para entender certas mulherices... há algumas sutilizas de alma, que é preciso ser para saber... li teu texto duas vezes, o olho meio que se colou na tela, impressionado... como é que podemos ter a expectativa de que eles, os seres XY, nos captem? não é à toa que isso é tão raro...

Li, reli e senti o texto tomando forma,crescendo...compreendi que algumas vezes é preciso olhar além do óbvio.
Seus textos são quebra-cabeças bem montados, matematicamente recortado. Palavras escondidas, fragmentos e pequenas porções de poesia.
Um desafio furta cor.

Plasticamente perfeito.

Um abraço

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