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quarta-feira, 19 de junho de 2024

Sangue puro

 



Não sei como lidar com a situação. É tudo muito difícil, ainda mais para uma pessoa como eu, doente. Já não tenho a mesma afinidade com a minha querida mãe, cooptada pelo mal, desde 2018, precisamente no ano das eleições presidenciais. Perdi, há muito, a companhia de alguns familiares e amigos, para o meu bem-estar, para a minha paz. Mas com a minha mãe é diferente, eu não posso simplesmente colocá-la de lado. Ela mudou muito depois que se converteu para a seita bolsonarista. Não tem mais pena dos pobres, acha que são um bando de desocupados porque querem: “É por isso que o País não vai para frente”. Avulta em predicados à figura da besta-fera, mais conhecido como Bozo. Esteve e está alimentando as suas sandices em vários grupos no WhatsApp e no Telegram. No fatídico oito de janeiro, estava na Praça dos Três Poderes e participou de toda a algazarra, na alucinação de tomar o País a pulso, para os de “sangue puro”, como já a ouvi dizer. Eu, inclusive, a vi na televisão, para o meu espanto. Foi detida e passou uns bons dias na prisão, o que não a fez mudar de pensamento. Nas poucas conversas que tive com ela nesse período, não me controlei e a tratei como uma criança mimada, que precisava de umas boas palmadas para se endireitar – ou “esquerdizar”. Depois de cinco meses, foi solta, mas tendo que usar, obrigatoriamente, uma tornozeleira eletrônica. Ela não se aquietou, arrumou confusão com um tio meu que é do exército, alegando que ele estava mancomunado com o comunismo; que ela tinha horror e nojo a gente assim – imagine o que ela sente por mim; a essas alturas, duvido do seu amor. Agora, amargo um mês sem notícias dela. A Polícia Federal está no encalço dos fugitivos. Penso que ela, uma aventureira da terceira idade, está em alguma selva da Argentina, ou no Paraguai. Nunca imaginei que uma pessoa sã – ou que eu julgava ser sã – fosse capaz de tantas atitudes tresloucadas. Marina, a minha esposa, quer procurá-la na Argentina, porque diz que agora é o antro dos fascistas; como se a Argentina fosse um país minúsculo e pudéssemos encontrá-la em alguma esquina de Palermo. Esse relato é uma indignação pessoal, para entender, acima de tudo, como as pessoas são capazes de mudanças drásticas por uma crença, em qualquer campo da vida. Já deixei de estudar há anos, mas pretendo voltar a cursar um mestrado em Sociologia, minha área, para desvendar esse mistério, que assola o nosso País. Será que a carestia e as dificuldades temporárias são capazes de virar a cabeça das pessoas? Mamãe nunca passou por dificuldade financeira, teve a sua boa vida como aposentada da Justiça Federal. O que a fez mudar de uma pessoa dócil, amável, para briguenta e desordeira? É tudo uma grande anormalidade social? Quero mexer na ferida, até achar uma explicação. Não perderei a minha mãe em vão.






segunda-feira, 17 de junho de 2024

Avôhai - poema de Maíra Dal’Maz


AVÔHAI




 meu corpo é sua réplica.

tornado um homem de ombros 

estreitos

cujo tórax não sustenta mais a própria cabeça 

de pele solta sobre o crânio 

o mesmo odisseu que segurou um pneu

de caminhão

sustentou a sede em outros currais

equilibrou o peso da arma 

o desejo da faca 

toda a carne rasgada 

com apenas um dente

afiado como as pernas desproporcionalmente longas 

os joelhos quentes

os dedos compridos 

os pelos 

a alma

as luzes

o sexo

os sinais de pele 

tudo

até o halo senil 

profundamente negro.

 

desconhecemos a história de troia 

temos pouco interesse em lamentos

os deuses tampouco nos animam.

 

arranco teu sinal com a unha

encontrei no meu braço esquerdo 

e penso que também tenho 

muito medo, vô

muito medo

da morte. 











domingo, 9 de junho de 2024

Cão perseguidor


 

Apesar do susto inicial de sentir um focinho frio a tocar-lhe no braço nu sem antes ter dado pela aproximação do animal, preparava-se para lhe afagar a cabeça, como costumava fazer a cães que se mostravam amistosos, quando parou, estarrecido. Não, não era possível, sabia que não era possível, mas quis muito acreditar, pelo menos durante uns instantes.

Era igualzinho ao Popi, tinha até a mesma mancha clara numa orelha, o mesmo  ar de quem está sempre a preparar alguma, um olhar direto mas ao mesmo tempo decidido e direto.

Muito estranho, aparecer um cão assim tão parecido e escolhê-lo a ele, de entre os muitos utentes daquela esplanada cheia.

Tentou manter os pensamentos estritamente no presente e no cão, com a disciplina rígida que fizera por aprender nos últimos anos. Sabia que se a mente lhe fugisse para o cantinho que fechara a sete chaves e de que vigiava ferozmente o acesso, destruiria em segundos a pouquíssima paz de espírito que criara com tanto custo.

Para disfarçar, olhou à volta à procura do dono, preparando um sermão sobre a inconsciência – mais, a ilegalidade – de deixar um animal à solta num sítio tão movimentado. Mas não viu ninguém, ou antes, viu muita gente mas ninguém que parecesse procurar um cão.

Cão esse que escolheu esse momento para lhe pôr a pata no braço, olhando-o com o mesmo ar de pedinchice de que o Popi era mestre.

Não aguentou mais. Com um gesto brusco, levantou-se, agarrou no jornal e nos óculos de sol que pousara na mesa e afastou-se rapidamente.

Pressentiu que o cão o seguia, mas nem se virou, limitou-se a acelerar ainda mais o passo. Devia ter resultado, deixou de lhe sentir a presença.

Mais calmo, abrandou o ritmo, estava quase sem fôlego, é que a idade e a falta de exercício não perdoam. Começava a acalmar-se quando o som de uma travagem brusca e gritos agudos se sobrepuseram ao ruído usual de uma movimentada tarde de sábado naquela zona tão turística.

Estacou, hirto de pavor, mas mesmo assim não se virou. É que sabia o que veria se o fizesse, o corpo da filhinha, abraçada ao Popi, meios engolidos pelo carro que os atropelara fatalmente há mais de vinte anos quando a criança se precipitara sem olhar para ir buscar o seu cãozinho que escapara à trela e decidira atravessar a rua.

Luísa LOpes

Imagem: QuickWrite





segunda-feira, 3 de junho de 2024

459 A

 


Abandono total

numa casa de 29 m2

com vista de fundo

para um bambuzal.

O piso era claro

antes de eu pisá-lo,

mas depois a vida

converteu-se em

desordem e acordei

deitado de costas

num corredor

do lado de fora,

com a chave na mão

esquerda coberta de

sangue e a fúria cega

de quem não se lembra

de nada.