Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Arte... para que te quero

 




Olhou novamente para o calendário, com a vaga esperança de se ter enganado. Mas não, bem marcado a vermelho, com inúmeras setas bem grossas a rodear o quadradinho, para dar bem nas vistas, lá estava ela a data fatídica da reunião de toda a sua família. Bom, família, é favor, entre tios e primos de vários graus eram mais de 200 pessoas, sem contar que com a entrada na adolescência de vários elementos das novas gerações era bem provável haver ainda mais namorados e “amigos especiais” na mistura.

Por este andar, as três pensões que costumavam ocupar, mais quartos diversos espalhados por toda a vila, deixariam, em breve, de ser suficientes. Quanto às refeições, bom, já estivera, como convidada, em inúmeros casamentos com bem menos gente e, acima de tudo,  com bem menor quantidade e variedade de comida.

Não que tivesse algo contra a família, era tudo boa gente, alguns, eram, até, bem simpáticos. Só que... todo o clã – sim, era um autêntico clã – era virado para as artes e apenas para elas. De todos os tipos, teatro, pintura, música, escultura, não havia nenhum ramo em que pelo menos um dos membros não estivesse metido. Até tatuagens, com um primo em segunda mão que era, segundo diziam, um artista premiado e muito procurado.

Nem as chamadas artes menores escapavam, bordados, rendas, quilts, tapetes, se podia ter uma vertente artística lá estava um membro da cada vez mais extensa família Gomes. Como uma exceção...

E era esse, precisamente, o problema de Amanda em ir a estas reuniões anuais. É que por mais que tentasse, e fazia-o desde bem miúda, era uma autêntica nulidade para qualquer atividade mesmo vagamente artística. Acreditem, a sua infância e adolescência tinham sido um verdadeiro calvário, saltitando de familiar em familiar em busca de algo para que tivesse pelo menos um niquinho de talento. Mas nada!

Para grande escândalo da família, acabara por se decidir a estudar o que realmente a atraía, física teórica, mais especificamente teorias da origem do universo. Uma vez formada, e com belíssimas notas, diga-se de passagem, não tivera o menor problema em encontrar um bom emprego num instituto de pesquisa, onde era feliz 51 semanas por ano, nem sequer pensando em tirar férias de mais de dois dias de cada vez para não perder pitada do que poderia acontecer na sua ausência.

Mas, chegava, depois, a malfadada 52.ª semana, que lhe estragava totalmente a disposição umas semanas antes e depois. Tentara de tudo para se sentir integrada, como namorar temporariamente artistas, quanto mais obscuro o que faziam, melhor era, só que mesmo assim havia sempre algum familiar conhecedor do assunto e que até fazia melhor, levando o seu suposto amor a deixá-la, amuado, ao fim de umas horas.

Este ano nem se dera ao trabalho de arranjar alguém, não valia a pena, só lhe acarretaria uma dose adicional de olhares de pena, isto fora as inevitáveis discussões com quem optasse por levar.

Enfim, agora era tarde demais, não havia nada a fazer, daí a dois dias começaria a sua provação, a menos que entretanto tivesse um acidente fatal ou, no mínimo, suficientemente grave para uma estadia no hospital. Só que isso seria sorte a mais...

Estava ela a organizar o trabalho para a sua ausência de vários dias quando uma imagem lhe despertou a atenção. Era uma de várias fotos que tirara com um microscópio eletrónico de altíssima resolução a pequenas amostras de várias substâncias para um estudo comparativo à escala atómica. Apesar de saber perfeitamente o que representava, perdeu-se na beleza das cores e linhas e, sem quase dar por ela, viu-se a rever todo o ficheiro.

Isto, sim, era algo que lhe falava à alma, não as obras consideradas usualmente artísticas, fossem de que tipo fossem, e que a deixavam sempre, mas sempre, indiferente. Nem as chamadas obras-primas mundiais lhe despertavam o menor indício de paixão, limitava-se a achá-las mais ou menos interessantes e não passava disso.

De repente, teve uma ideia absolutamente fabulosa. Usando a melhor impressora do instituto, preparou uma pequena pasta com cópias das melhores imagens, ou antes, das que achava mais atraentes, escolhendo, para isso, um papel de belíssima qualidade e a melhor regulação de qualidade. Levou horas, mas o final tinha um belíssimo portfólio de imagens “atómicas”.

E foi com ele na bagagem que partiu, de ânimo bem mais leve, para o que era, desde há muito, o seu calvário. É que desta vez, quando lhe perguntassem com ar de comiseração se ainda se dedicava à tal física, puxaria das imagens e diria, “Esta é a minha arte!” Modéstia à parte, antevia ser um sucesso entre os seus familiares, pela primeira vez na vida. Mais ainda, tinha a certeza de que ninguém, absolutamente ninguém, teria arte como a dela.

Luísa Lopes

Imagem feita com QuickWrite

Share




0 comentários:

Postar um comentário