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domingo, 19 de fevereiro de 2023

Vencido - venci

 



Havia dias em que simplesmente desmaiava na sala de casa. Noutros, queria correr em fuga desabalada. Era um reflexo de tudo que me consumia. Marina me chamava de sabotador, não só por isso, mas pelo meu esgotamento em ser “positivo”. “Você se entrega muito fácil, Lucas! Não vê que todo mundo batalha e que você não é o único?”. A verdade é que estava arrebentado por fazer, de forma maquinal, o serviço de conferência de documentos e despachos na prefeitura. Todo dia era a mesmíssima coisa. Queria me sentir útil, e percebia que o meu mísero trabalho poderia ser feito por um robô. Enquanto meus amigos sofriam com a iminência de perderem a boquinha – o “trabalho” – para máquinas sofisticadas, eu contava os dias para rebentar a novidade arrasadora, que me liberaria daí. Você pode estar pensando que eu não fazia nada além de reclamar – como também pensava Marina –, mas não é bem assim: em 2020, no grosso da terrível pandemia, quando tive de trabalhar em home office, fui requisitado para “organizar” o setor de memória da prefeitura, para gravar, documentar e arquivar os apontamentos, de 2000 para cá. Como diria o meu pai, era serviço para corno nenhum botar defeito – até onde sabia, não era corno, mas me senti um, com o fardo danado. Já cheio, imaginei o que devia bolar para me desligar do maldito ofício. Uma luz sucedeu, por conta de estar familiarizado ao setor de memória – veja como as peças se encaixam –: eu tinha a manha de operar, muito bem, as máquinas, os softwares e afins. “Poxa, por que não fazer uma faculdade de TI?”, cogitei, inquieto. Durante duas semanas, caí nas redes e sites de universidades, estudando as possibilidades para o pretenso curso. Marina, quando soube, me recriminou: “E agora você tem tempo, é? Para mim, não sobra um minutinho…”. Na mente, neguei que seria possível: esperávamos uma filha; havia um cabedal de problemas, e contas para pagar. Falei com meu pai, e ele, sabendo da minha aflição, disse que poderia me ajudar financeiramente. (Não lhe comentei que pretendia sair do trabalho; não era o momento; ele, decerto, se preocuparia). Um empurrãozinho: bastou esta palavra de ajuda para me animar. À noite, rezei dobrado: pedi a Santo Expedito que me livrasse do peso atual; que Nossa Senhora Desatadora dos Nós desatasse o meu novelo; que me iluminassem e me dessem forças para alcançar este projeto. No sonho, recebi a luz de que tanto precisava: estávamos eu, Marina e nossa filha viajando, talvez por Nova Iorque; trabalhava numa multinacional; usava terno e tomava café do Starbucks – sim, era bastante fiel. Acordei sorridente e Marina perguntou o que tinha me acontecido: “Nada não. Só porque vi um lindo dia pela janela”. Ela me olhou, estática, e coçou a cabeça. “Cuidado para não piorar da maluquice”. Matriculei-me no curso e na faculdade que me permitia fazê-lo à distância. De início, o nosso trato implícito era de mútua ajuda com os afazeres de casa; revezávamos nas lavagens de roupa, nas idas aos supermercados etc. O tempo passou como devia passar, apesar da minha ansiedade. No meio-tempo, começo de 2021, Liana nasceu, e quase alucinei de amor e de tensão. Marina pareceu reconhecer a minha felicidade e a minha luta, oferecia-se até para preparar lanchinhos nas horas mais inglórias. Liana foi o presente necessário para tudo acontecer. Nossos laços se estreitaram. Conseguia crer no futuro, e já me via morando nos Estados Unidos, com minhas pequenas, provando a vida no primeiro mundo. O trabalho na prefeitura, ao contrário de antes, injetava a energia de que eu precisava para entender o que, de fato, era bom para mim; estava decidido e engajado. No último ano de faculdade, recebi um convite de uma empresa americana para atuar justamente no trabalho dos sonhos: consultoria e desenvolvimento de softwares. Pulei de alegria quando cheguei em casa e Liana me abraçou como nunca. Dividi com meu pai a notícia, e ele disse que eu fazia muito bem; que, quando era novo, queria ter morado fora, comigo, meu irmão e minha mãe, mas que não tinha estudo para isso. Para o fim, vou cumprir um sonho que não é só meu. Agora parto para as aulas de inglês com o meu professor nativo, quem sabe o meu primeiro amigo do lado de lá.


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