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segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Perdição

 


A lua é uma entidade que me domina. Quando morava no interior, na cidade de Alto Santo, saía ao léu, perdido na noite, procurando aventuras. Meus irmãos, todos mais velhos, queriam que eu os seguisse em jornadas épicas. Minha mãe, sem dar conta de oito, acolhia o destino e entregava nas mãos de Deus o que tivesse de ser. Meu pai, metido a vaqueiro, era o responsável por nossos genes loucos e desbravadores. Então, arriscávamos as nossas vidas na preparação de arapucas e armadilhas, com a ilusão de que conseguiríamos alimentos para a manutenção de casa. Logicamente, isso não era a verdade; o fato é que, com as proezas, sentíamos que nos tornávamos mais homens, mesmo sendo meninos. Numa dessas – creio que a última –, seguimos os rastros plantados pelas manhãs, para capturarmos preás e outros pequenos bichos. Ouvi um uivo e, no ato, questionei meus irmãos, que, por brincadeira, disseram que eu estava bobo de medo. Seguiram-se mais três ou quatro chamados, em intervalos de dez minutos; só aí acreditaram em mim. A questão é que os uivos se tornavam, com o passar do tempo, mais perceptíveis, pela proximidade. Arnaldo, o mais velho, era o nosso guia e chefe. Mandou-nos para um esconderijo na Pedra da Lua, na qual havia um espaço oco, que podia nos abrigar. Ele disse que sairia para vasculhar. Leandro, o do meio, quis porque quis ir ao seu encalço – Leandro era medroso, achava-se protegido sob as asas do irmão. Com pouco tempo, escutamos um tiro. Seguiu-se um silêncio maldito. Paulo pediu que não saíssemos e que ficássemos quietos; “nenhum pio!”, determinou. A tragédia era o decurso do tempo, que avançava, sem o retorno de nossos irmãos. Escutamos mais um uivo. Lourdes começou a chorar, sendo aparada pela mão implacável de Paulo, quase a sufocá-la. Como era o menor, saí de fininho e adentrei a mata. Tinha a firme disposição de encontrá-los. Parado, ali, seria só peso e preocupação para os demais. A lua iluminava de forma a apaziguar os meus instintos. Peguei um pedaço grande de pau e, com ele, estava certo de que, se preciso, mataria o bicho que se aproximasse. Uma coruja rasga-mortalha passou assobiando, decretando morte iminente – poderia ser a minha. Não sei que força me sucedeu para enfrentar quaisquer dores. Segui caminhando no chão de terra batida, sem ver dez palmos à frente. Em pouco tempo, estava nas cercas do terreno de Dorival, um velho ranzinza, que imprecava a danação para os seus concidadãos. Pensei que, se fosse o velho, mataria com uma cajadada. Não era nada. Continuei andando na linha das cercas. Encontrei, embaixo de uma árvore, uma de nossas armadilhas com um preá. Voltaria em outra oportunidade para levá-lo; meus irmãos urgiam o meu empenho. Já andava quilômetros sem saber sequer do meu paradeiro. Cansei. Encostei-me numa outra árvore seca. Dormi de cansaço. Amanheci com uns ruídos de um veado logo adiante, cutucando as raízes da planta. Estava perdido, já na entrada da mata fechada. O dia passou lento, sem resquício de vida humana por perto. Comi, à tarde, umas frutinhas que pareciam coco-babaçu. Tive dores no estômago e vomitei tudo. Era tempo de caju; mandei para dentro uns poucos que achei pelo caminho. Tomei água estancada nas plantas. O céu fechou rápido e tive de conviver com a incerteza de permanecer vivo. Outros sons se ouviam, como de bichos escapando de encruzilhadas. Passei a noite em claro. Resolvi não caminhar mais. A orientação de minha mãe era que, se nos perdêssemos, permanecêssemos no mesmo local, para logo sermos encontrados. A fome me tomava; era capaz de qualquer besteira, no auge dos meus onze anos. Se passasse mais uma noite aí, não resistiria. À tarde, escutei gritos vindos da área aberta. Gritava de volta e fui reconhecido. Vinham sete homens a mando do vaqueiro errante, vulgo meu pai. Não houve festança ao me encontrarem. Levei, ali mesmo, uma sova. Não deixaram que me explicasse. Não havia súplica que desse jeito. Fui amarrado para andar puxado por um cavalo em trote curto. Quando cheguei, esbaforido, levei dois tapas de minha mãe, seguidos de um abraço choroso. Meus irmãos me condenavam com os olhos. Foram punidos também. As noites, a partir do ocorrido, eram convocações para o erro. Queria fugir e descobrir as maravilhas daquela terra esquecida. Podia ser um rei indomável, um novo Lampião. Hoje, cabra velho, tenho paixão pelo que as noites prometem. Perdição.




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