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domingo, 13 de novembro de 2022

"O Cheiro do Medo"

 

“O bando de homens está com medo. Sei-o bem, porque sou um cão e ao meu olfacto chegou o cheiro ácido do medo”.

A maior parte das vezes em que sinto este cheiro, facilmente descubro de onde vem esse medo. Hoje está a ser muito mais complicado, porque por mais que me esforce ainda não consegui descobrir a razão de tanto medo. Não sei se estão à espera de serem vítimas de alguma emboscada ou se o medo advém daqueles momentos que antecedem os grandes golpes.

Se estão a preparar um assalto a casa, desiludam-se, ó medrosos, que eu cá estou para vos fazer frente. Sou um cão de guarda e desde cachorrinho que tenho treino específico para esse mister.

Não é para me gabar, mas posso dizer que já fui posto à prova várias vezes e com grande sucesso. Lembro-me que uma vez tive de me confrontar com um perigoso malfeitor, de grande calibre e sem ajuda de ninguém consegui pô-lo em fuga. Nem é por acaso que os meus donos decidiram baptizar-me com um nome cheio de significado, Leal.

O cheiro ácido do medo chega-me ao olfacto cada vez mais intenso. A sua origem não pode ter nada a ver com coisas comezinhas. Tenho cá um arrepiante pressentimento de que o medo tem a ver com algo de sobrenatural, talvez com almas maléficas do outro mundo.

Afinal de que têm eles medo? Poderá também ser de algum animal feroz ou de algum ajuste de contas entre bandos rivais. Tenho ouvido histórias contadas ao serão acerca de autênticas guerras. Continuo sem dar resposta a esta minha interrogação.

Também não consigo distinguir bem, quase que nem vejo sombras, porque é noite cerrada e o único fraco ponto de luz está colocado no lado contrário. Vou-me esforçando por tentar descortinar alguma coisa, mas por mais que tente fazer jus à minha excelente visão, nada consigo. Sei que são cinco, não pela intensidade do som, o bando fala baixo, mas porque oiço cinco timbres bem diferentes de sons vocais. Sou sobredotado nestas coisas da audição, tenho ouvido absoluto e consigo facilmente distinguir os timbres uns dos outros, no meio de qualquer algaraviada. Também sou capaz de afirmar com toda a certeza que o bando é composto por homens não muito velhos, porque quando falam não arrastam as palavras, têm a fala fluente.

Sou capaz de descodificar o mais insignificante ruído, nasci assim, confidenciou-me uma vez a minha mãe, que recorria frequentes vezes a mim, quando andávamos juntos pelos montes da herdade de noite. A guarda que montávamos só era eficaz se soubéssemos distinguir todos os ruídos, para saber aquilo com que podíamos contar. A minha mãe ensinou-me muitas coisas importantes que me ajudaram ao longo da vida e uma era conseguir distinguir bem os sons uns dos outros.

De dia é mais fácil, porque ouvimos e vemos bem, de noite, além da visibilidade ser reduzida, ela está cheia de ruídos esquisitos e como não vemos os autores deles, ficamos perdidos.

Hoje estou completamente perdido e desorientado, com o que está a acontecer neste momento. Oiço as diferentes falas, mas não consigo distinguir quem é quem, mas sei que o bando de homens está com medo, não pelo que dizem, mas pelo cheiro que chega ao meu olfacto.

Agora oiço um outro som que vem chegando, mas que não consigo descodificar. Não consegue chegar lá, fico-me pelo ruído e não sei de que ruído se trata. O som não me é familiar, nunca antes em circunstância alguma o ouvi. Nada tem a ver com os sons que oiço desde o meu nascimento e que tenho aprendido a distingui-los.

Não consegui descodificá-lo, só fui capaz de o associar a uma imagem virtual ao decompor aquele som em todas as suas camadas. O resultado deu numa espécie carreta puxada por estranhas criaturas. Assim que aquela chocolateira estancou, ouvi um ranger de uma porta a abrir-se e um movimento de alguma coisa a saltar paro o chão.

Não sinto nenhum odor. Essa coisa que saiu da carreta não tem cheiro. Um verdadeiro fenómeno da natureza, porque tudo o que é da natureza tem cheiro. O cheiro ácido do medo veio em crescendo, à medida que aquela coisa sem cheiro caminhava ao encontro daquelas cinco criaturas. Quando o meu olfacto estava prestes a atingir o grau máximo do suportável aquele bando de homens também deixou de ter cheiro.

 

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